4. O bispo que
marchava com os

trabalhadores

Padre Angélico virou Dom Angélico

numa tarde de sábado, 25 de janeiro de 1975.

Fundada em 25 de janeiro de 1554, a cidade de São Paulo completava “421 anos de contrastes”, conforme a manchete estampada na primeira página do jornal Folha de S.Paulo naquele dia. Numa iniciativa inédita na história da Igreja Católica no Brasil, quatro padres foram ordenados bispos numa mesma cerimônia, às 17h na Catedral Metropolitana. Ao lado de Dom Angélico, estrearam como bispos-auxiliares Dom Mauro Morelli, Dom Francisco Manuel Vieira e Dom Joel Ivo Catapan.

De manhã, na missa celebrada em homenagem ao aniversário de São Paulo, também na Sé, Dom Paulo fizera um discurso firme, como de costume, e um apelo para que paulistanos e paulistanas colocassem o povo no centro de suas preocupações. Segundo o arcebispo, era preciso “apagar a imagem negativa de que a grandeza da cidade esmaga e oprime os humildes”. Em seguida, não poupara críticas à capital dos paradoxos: terra de riquezas e oportunidades, aquela era também a cidade das favelas, das periferias, onde o cidadão, segundo Dom Paulo, vivia “esquecido do progresso, sem água, sem esgoto, e distante do que podemos chamar de uma vida em comunidade.”

Dom Angélico foi o escolhido para discursar na missa da tarde, em nome dos quatro bispos recém ordenados. Logo após a entrega das insígnias episcopais – anel, báculo e mitra –, falou para uma audiência de 3 mil pessoas:

— Procuraremos dar a nossa vida para que esta cidade de São Paulo, construída pela inteligência, entusiasmo, suor e lágrimas dos homens, conheça as dimensões de um coração novo, repleto de santidade, do amor de nosso Deus e Senhor.

Dom Paulo e Dom Angélico agora bispo - 1975
Feito bispo, Dom Angélico faz uso da palavra durante a cerimônia de sagração episcopal, na Sé, em 1975.
A cerimônia de sagração episcopal do agora bispo Dom Angélico Sândalo Bernardino é noticiada no Diário de Notícias, jornal da arquidiocese de Ribeirão Preto dirigido até muito recentemente pelo próprio Padre Angélico.
Nomeação do primeiro bispo de Piracicaba é destaque na imprensa local.

Cada bispo-auxiliar assumiu uma região episcopal. Dom Joel foi designado para a região Norte. Dom Mauro, para a região Sul. Dom Francisco, para Osasco. E Dom Angélico, para a Leste. No final daquele ano, a equipe de Dom Paulo ganharia mais um reforço: Dom Antônio Celso de Queiroz, bispo-auxiliar da região do Ipiranga. Considerando os dois bispos-auxiliares que já acompanhavam Dom Paulo – José Thurler e Benedito de Ulhôa Vieira –, a Arquidiocese passou a contar com sete bispos-auxiliares. O grupo chegaria a nove no final da década.

A região episcopal atribuída a Dom Angélico era a maior de todas. Sua jurisdição reunia 3 milhões de pessoas, enquanto todas as regiões somadas somavam 10 milhões. A taxa de crescimento populacional era de 4% ao ano, quase o dobro da registrada no país, então na casa dos 2,4%. Contribuía para isso o fluxo migratório. Era ali, na colossal Zona Leste, que se instalava, irremediavelmente em condições precárias, a imensa maioria dos 400 mil retirantes que partiam, todos os anos, das áreas mais castigadas pela fome e pela seca rumo ao “Sul-maravilha”.

— Benza-Deus, aquilo era uma cidade.
Dom Angélico admirava-se com o tamanho da Zona Leste:

— Uma cidade em termos de população e de extensão. E um país em termos de diversidade cultural.

Dom Paulo não havia mentido quando escrevera, em outubro do ano anterior, que, uma vez transferido para São Paulo, Dom Angélico iria se sentir “mais útil à Igreja e ao mundo”. Havia muita coisa a ser feita.

Dom Angélico foi morar numa casa em frente à igreja de São José, no Belenzinho. De lá até o fundão da Leste, onde o Itaim Paulista encontra Poá e Itaquaquecetuba, era tudo sua “jurisdição”. De um dia para o outro, o menino que cresceu descalço, num bairro com uma única rua no interior de São Paulo, tornava-se responsável por uma população dez vezes maior do que a de Ribeirão Preto, então com cerca de 280 mil habitantes.

Era tudo superlativo na conturbada Zona Leste. Muita gente, quase sempre muito pobre, enfrentava distâncias muito grandes e desigualdades ainda maiores. Em poucos meses, Dom Paulo passou a pleitear mais um bispo-auxiliar junto ao núncio apostólico, representante do papa no Brasil. O cardeal entendeu que a Leste era tão populosa e com uma realidade tão complexa que precisaria de dois bispos-auxiliares. Seguiu-se um longo período de negociação, primeiro pela vaga e depois para decidir quem a ocuparia. Quando Dom Paulo declinou ao núncio o nome de quem havia escolhido para a função, o núncio orientou o cardeal a submeter uma lista tríplice ao Papa Paulo VI.

Apenas em maio de 1976, o oitavo bispo-auxiliar de São Paulo foi ordenado por Dom Paulo. Dom Luciano Mendes de Almeida era exatamente o nome que Dom Paulo tentara emplacar desde o início.

A região episcopal Leste foi dividida da seguinte forma: a porção localizada entre o Brás e a Penha, chegando a Sapopemba mais ao sul, foi batizada de Leste 1. A porção seguinte, de Ermelino Matarazzo ao Itaim Paulista, e de São Mateus até Cidade Tiradentes, ganhou o nome de Leste 2. Mais tarde, a Leste 1 ficaria conhecida como região episcopal do Belém, enquanto a Leste 2 se tornou a região episcopal de São Miguel Paulista.

Dom Paulo consultou Dom Angélico:

— Você fica no Belém ou vai para a Leste 2?

— Deixa que eu vou pro fundão! — Dom Angélico escolheu.

O primeiro endereço de Dom Angélico em São Miguel foi uma casinha no Parque Cruzeiro do Sul, na paróquia de Ermelino Matarazzo. Casa simples, de paredes brancas, onde o bispo cultivava roseiras no quintal. Só depois, no final da década, Dom Angélico foi morar ao lado da matriz, mais tarde transformada em catedral. De 1975 a 1989, a trajetória de Dom Angélico se confunde com a história da Zona Leste e com a história da Igreja de Dom Paulo, reconhecida pela atuação em defesa dos direitos humanos.

Uma das primeiras ações de grande repercussão tomadas por Dom Paulo na Arquidiocese foi a Operação Periferia. Abrindo a Campanha da Fraternidade de 1972, que teve como lema “Descubra a felicidade de servir”, Dom Paulo propôs à população de São Paulo que se engajasse em ações que tivessem como cerne o acolhimento dos sem-teto e dos migrantes em situação de vulnerabilidade, bem como sua inserção na sociedade. Um complexo mapeamento das comunidades mais vulneráveis e suas demandas urgentes foi feito em seguida, e o dinheiro levantado pela Campanha da Fraternidade foi utilizado para adquirir imóveis e instalar centros comunitários, creches, escolas e postos de saúde nos bairros. Dom Paulo entendia que não havia forma mais justa de empregar o dinheiro da Igreja. Como cereja do bolo, anunciou que venderia o palácio episcopal para que os recursos fossem destinados à Operação Periferia. “Foi também nessa hora que eu, como franciscano, me dei conta de que não podia viver num palácio cercado de dez mil metros de chão povoado das mais belas plantas, árvores e mesmo de animaizinhos de estimação”, escreveu na autobiografia Da esperança à utopia (Sextante, 2001).

O Palácio Pio XII ocupava uma gleba muito bem localizada entre os bairros do Paraíso e Bela Vista, próxima aos Hospitais Beneficência Portuguesa e Oswaldo Cruz. Incluía o edifício principal e outras cinco casas, destinadas à residência de sete irmãs, oito irmãos e dois funcionários. Oito seguranças também se revezavam no local. Dom Paulo não se conformava em manter toda essa estrutura para jantar quase sempre sozinho – e na copa, porque a ideia de jantar sozinho num salão de banquetes o deixava perplexo. O então prefeito Figueiredo Ferraz tentou demovê-lo dos planos. Um grupo de senhores influentes acionou o Condephaat, órgão responsável pelo patrimônio histórico do Estado, para tentar impedir a venda. O processo de tombamento foi arquivado um ano depois, uma vez que o edifício não tinha valor artístico ou histórico, e, em junho de 1973, a propriedade foi finalmente vendida para uma incorporadora. “A venda, por cinco milhões de dólares, não significou apenas um gesto de despojamento, mas sobretudo uma condição para implantar centros de ação para leigos”, escreveu Dom Paulo. Até o fim da década, ele calculava em mais de 1.200 o número de terrenos adquiridos para a Operação Periferia.

A Igreja de São Paulo transpirava opção preferencial pelos pobres por todos os poros. Além de deflagrar a Operação Periferia, Dom Paulo gravou na Igreja de São Paulo o carimbo da oposição às violações de direitos humanos praticadas pela ditadura. Dom Angélico ainda não tinha completado um ano em São Paulo quando se viu em meio a um dos episódios mais emblemáticos de resistência contra o arbítrio durante os “anos de chumbo”. Em outubro de 1975, ele esteve ao lado de Dom Paulo num evento histórico: um ato ecumênico realizado na Sé em homenagem ao jornalista Vladimir Herzog (link externo), torturado até a morte no DOI-Codi de São Paulo.

Chefe do jornalismo da TV Cultura, Herzog tinha 38 anos quando foi chamado para prestar depoimento sobre seu envolvimento com o Partido Comunista Brasileiro, o PCB. Na manhã seguinte, um sábado, 25 de outubro, Herzog se apresentou por volta das 9h no local indicado. O DOI-Codi, cuja sigla significava Destacamento de Operações de Informação – Centro de Operações de Defesa Interna, ficava na esquina da Rua Tutóia com a Rua Tomás Carvalhal, no Paraíso. Documentos obtidos em 2013 pela Comissão Nacional da Verdade revelariam que, até aquele momento, cerca de 50 presos políticos tinham sido executados ali, a maior parte entre 1970 e 1973, quando o DOI fora chefiado pelo major Carlos Alberto Brilhante Ustra.

Naquele mesmo dia, por volta das 15h, o Serviço Nacional de Informação, em Brasília, recebeu a notícia de que Herzog tinha cometido suicídio. Uma farsa. Segundo a versão oficial, veiculada junto com uma fotografia produzida pela polícia, Herzog havia se enforcado com o cinto do uniforme, atado a uma grade a 1,63 metro do chão. Ocorre que o uniforme utilizado pelos detentos do DOI-Codi não tinha cinto. E Herzog tinha mais de 1,63 metro. Na fotografia distribuída à imprensa, é possível ver suas pernas dobradas, os pés arrastando no chão. Herzog não havia tirado a própria vida. Como se confirmou mais tarde, ele tinha sido torturado até a morte e, em seguida, colocado naquela posição para a foto.

A tradição judaica manda sepultar os suicidas numa ala específica, normalmente nas bordas do cemitério. O rabino Henry Sobel (link externo), da Congregação Israelita Paulista, recém-chegado ao Brasil e com apenas 31 anos, foi dar uma espiada enquanto o corpo, transferido para o velório do Hospital Albert Einstein, no Morumbi, era preparado para o sepultamento. Ali, pôde conferir as marcas da tortura. Discretamente, orientou que o corpo fosse enterrado no centro do cemitério, decisão que confrontava a versão oficial e incomodou os setores mais conservadores da comunidade judaica.

Dom Paulo esteve no enterro. No dia seguinte, diretores do Sindicato dos Jornalistas Profissionais de São Paulo foram à sua casa para fazer um pedido. Queriam que ele celebrasse uma missa de sétimo dia em homenagem a Herzog na Sé. Dois anos e meio antes, o cardeal fizera algo parecido após o assassinato de outra vítima fatal da repressão, o estudante da USP Alexandre Vannucchi Leme (link externo), torturado até a morte, aos 22 anos, no mesmo DOI-Codi. Agora, não haveria de ser diferente. Dom Paulo lembrou aos sindicalistas que Herzog não era católico. O ideal seria organizar um ato ecumênico. Foi o que fizeram. No dia 31 de outubro, cerca de 8 mil pessoas se espremeram na Catedral e na Praça da Sé. “O reverendo Jaime Wright (link externo) representou as diversas denominações cristãs, e o rabino Henry Sobel, ainda um tanto desconhecido em São Paulo naquela época, pronunciou a bela exposição judaica bem adaptada ao momento trágico”, escreveu em suas memórias. Ainda segundo Dom Paulo, foi o “evento mais marcante da ação ecumênica”.

Dom Angélico, jornalista, ficara consternado com tamanha truculência contra seu colega de profissão. Esteve no culto ecumênico, ombro a ombro com Dom Paulo, auxiliando na liturgia. Menos de três meses depois, em 17 de janeiro, outra pancada: Manoel Fiel Filho (link externo), metalúrgico que vivia na Vila Guarani, em Sapopemba, teve idêntico destino de Herzog. Interrogado pelos agentes do DOI-Codi, foi torturado até a morte e, mais uma vez, divulgou-se a versão de suicídio.

Dessa vez, a missa de sétimo dia foi celebrada por Dom Angélico lá mesmo, em Sapopemba, na paróquia Natividade do Senhor, a duzentos metros da casa do operário. A opção da missa no território foi feita para que os trabalhadores e suas famílias, mães e crianças, pudessem comparecer sem o estorvo do deslocamento até o centro – que invariavelmente lhes tomava duas horas para ir e duas para voltar. A pequena igreja, quase um galpão com portão de alumínio cercado por um jardim de terra batida, ficou abarrotada com cerca de 500 pessoas, entre as quais Clarice Herzog, viúva do jornalista Vladimir Herzog, morto três meses antes. Dom Angélico celebrou ao lado de nove padres com a firmeza habitual. O Sermão da Montanha, texto preferido de Dom Angélico, veio bem a calhar na segunda leitura: “Bem-aventurados os que são perseguidos por causa da justiça, porque deles é o Reino dos Céus”. Em seguida, a homilia:

— Quem não está vendo Deus a falar da morte triste do metalúrgico Manoel Fiel Filho? — Dom Angélico discursou.

— Como tantos outros, ele foi torturado? Morreu em consequência de maus tratos? Mas há quem duvide ter-se transformado o DOI-Codi do II Exército em casa de horrores, onde os presos são submetidos a terríveis constrangimentos e violências, para vergonha dos homens dignos deste país.

Aquelas duas mortes, ocorridas quase na sequência e em condições similares, provocaram a queda do general Ednardo d’Ávila Melo, então comandante do II Exército, três dias após a divulgação da morte do operário. O terrorismo como política de Estado, no entanto, não cedeu. Em 1977, a invasão da PUC de São Paulo por 500 soldados fortemente armados, sob o comando do Coronel Erasmo Dias, então secretário de Segurança Pública do Estado, resultou na prisão de 1,5 mil estudantes e em dezenas de internações. Bombas lançadas pelas forças de segurança destruíram vidraças e provocaram queimaduras de segundo e terceiro graus em muitos alunos da universidade católica. Salas de professores foram reviradas, livros foram pisoteados.

Mas foi um episódio em 1979 que abalou de forma excepcional o coração de Dom Angélico. No início da tarde de 30 de outubro, ele estava reunido com Dom Paulo e os outros bispos-auxiliares numa sala da Cúria Metropolitana quando chegou a notícia. Outro operário havia sido vítima da repressão, desta vez abatido a bala, à luz do dia, diante de dezenas de companheiros. Era o Santo.

Operário na Filtros Mann, uma fábrica da Zona Sul, Santo Dias da Silva (link externo) morava com a mulher, Ana Maria, e os dois filhos num loteamento na Vila Remo, próximo à Represa de Guarapiranga, sem saneamento, água encanada, transporte, escola ou posto de saúde. Militante da oposição sindical, ele havia integrado uma chapa que concorrera à diretoria do sindicato dos metalúrgicos de São Paulo no ano anterior. Mesmo derrotado, exercia influência sobre os operários das regiões de Santo Amaro, onde trabalhava, e Capela do Socorro, onde costumava militar. Dois dias antes, trabalhadores em campanha salarial haviam dado início a uma greve. Lideranças como Santo Dias visitavam as fábricas nos horários de troca de turno para dialogar com os peões, distribuir panfletos e convencê-los a aderir à paralisação. Eram os piquetes.

Na hora do almoço do dia 30, Santo Dias foi chamado pelos companheiros para reforçar um piquete na porta da Sylvania, na Rua Quararibéia, quase esquina com a Avenida Nossa Senhora do Sabará. Ao chegar, Santo notou a presença de dois policiais. Os agentes discutiam com os grevistas e ameaçavam indiciá-los na Lei de Segurança Nacional. O artigo 32 da referida lei previa pena de dois a seis anos de reclusão para quem promovesse greve, enquanto o artigo 33 estabelecia pena de um a três anos para quem incitasse publicamente à subversão da ordem, à desobediência às leis, à luta de classes.

De repente, começou um empurra-empurra e um dos soldados atirou para o céu. Os operários se dispersaram, o que não impediu que o policial mirasse e disparasse contra Santo Dias. Ferido de morte, Santo foi levado pelos policiais até um camburão. Pegaram seus documentos e pareciam determinados a desaparecer com o corpo quando Ana Maria, sua esposa, entrou no camburão junto com ele e não arredou o pé dali. A essa altura, profissionais da imprensa já cercavam o camburão e preparavam-se para segui-lo.

Na Cúria, Dom Paulo comentou com Dom Angélico:

— O corpo do Santo está indo para o IML. Vamos até lá.

Dom Angélico e Dom Paulo eram amigos de Santo Dias. O metalúrgico tinha 37 anos e era membro da Pastoral Operária, a mais antiga pastoral social do Brasil, criada na Arquidiocese de São Paulo em 1970 e coordenada por Dom Angélico a partir de 1975.

Na Igreja de Dom Paulo, havia dois sistemas paralelos de divisão dos trabalhos. Nas palavras do cardeal, os bispos-auxiliares deveriam ser responsáveis por uma parte da cidade e também pela cidade inteira. Com esse pensamento, Dom Paulo buscava impedir que os bispos ficassem encastelados em feudos sem conhecer a realidade mais ampla da Arquidiocese. Em relação à cidade toda, a divisão seria temática, conforme os diferentes campos de atuação que o trabalho pastoral exigia. Assim, cada um assumiu uma região geográfica e ficou responsável por uma pastoral. Dom Luciano, por exemplo, era bispo do Belém e coordenador da Pastoral do Menor. Dom Joel, bispo de Santana, ficou com a Pastoral da Juventude. Coube a Dom Angélico a Pastoral Operária, honroso desafio aceito por ele num dos períodos mais turbulentos da história da República, quando eclodiram as maiores greves do país, em São Paulo e no ABC Paulista.

— O papel da Pastoral Operária é alimentar a fé dos trabalhadores para que essa fé os motive a lutar pelos direitos da classe trabalhadora — diz o escritor Frei Betto, que foi assessor da Pastoral Operária da Diocese de Santo André nos primeiros anos da década de 1980. — A Pastoral Operária não é, em si, um movimento social. É como um posto de gasolina, que oferece aos trabalhadores o combustível da fé. O importante não é ficar no posto, mas voltar para a estrada depois de abastecido. Os trabalhadores se abastecem na Pastoral Operária e retornam a seus movimentos para atuar neles como militantes cristãos.

Paulo Pedrini, atual coordenador, diz que foi graças à criação da Pastoral Operária que a realidade do mundo do trabalho pôde ser incorporada às práticas da Igreja.

— É uma missão de mão dupla — diz. — Ao mesmo tempo em que a pastoral é a presença da Igreja no meio dos trabalhadores, ela também leva a realidade dos trabalhadores para o seio da Igreja.

Santo Dias foi um dos principais líderes da Pastoral Operária na Zona Sul. “Um cara pacificador, do diálogo, que buscava conter os companheiros mais exaltados”, segundo Pedrini.

Naquela dia 30 de outubro de 1979, já estava escuro quando Dom Angélico e Dom Paulo chegaram ao Instituto Médico Legal. O cardeal foi entrando, sem pedir licença, e o bispo-auxiliar foi atrás. Encontraram o corpo do Santo nu, de bruços, sobre uma mesa fria, utilizada em exames necroscópicos. Ana Maria aguardava junto à porta. A chegada do cardeal e de Dom Angélico foi um alívio para a viúva, que vinha escutando toda sorte de ofensas por parte dos policiais: “vagabundo”, “comunista”, “subversivo”, “agitador”, “arruaceiro”.

— Olha o que fizeram com o meu Santo! — Ana Maria chorava.

Dom Paulo apoiou o dedo indicador no buraco da bala e rezou o Pai-Nosso.

— Vejam o que vocês fizeram! Vejam o que vocês fizeram!

Dom Angélico se lembrou do centurião romano que atravessou com uma lança o tórax de Cristo durante a crucificação. Agora era um soldado que impunha ao operário semelhante martírio. Aquela bala era a lança do centurião.

— Santo Dias foi um mártir.

Um discípulo de Jesus que entregou a vida em defesa dos trabalhadores, numa greve justa, reivindicando direitos.

Diante da recusa de Ana Maria em velar seu companheiro na Assembleia Legislativa – onde nunca lhes fora permitida a entrada – ou na sede do Sindicato dos Metalúrgicos de São Paulo – onde a diretoria “pelega” havia derrotado a chapa de Santo um ano antes, numa eleição supostamente fraudada – Dom Paulo sugeriu velar o corpo na Igreja da Consolação e, de lá, conduzir o caixão em procissão até a Sé.

Foi um cortejo de arrepiar. Quinze mil pessoas percorreram os 1.700 metros de distância entre a igreja e a Catedral. A multidão cantava versos de Pra não dizer que não falei das flores, de Geraldo Vandré – “Caminhando e cantando e seguindo a canção / somos todos iguais, braços dados ou não” –, e repetia as palavras de ordem entoadas por Dom Angélico como se fosse uma orquestra regida por ele:

— Companheiro Santo, você está presente! O povo unido jamais será vencido!

Ana Maria marchou o tempo todo ao lado do caixão e de Dom Angélico. Os filhos Santo Dias Filho, o Santinho, e Luciana, com 13 e 11 anos, foram no carro do cardeal.

— O caixão chegou quebrado à Catedral, com o fundo soltando, e tiveram de trocar — conta a menina, hoje com 53 anos. — Eu via aquela multidão e só pensava no meu pai.

Na missa de corpo presente, realizada na Catedral na hora do almoço, um operário e Dom Angélico fizeram as leituras da palavra, cabendo a Dom Paulo a homilia. No ano seguinte, o metalúrgico da Vila Remo foi homenageado com a criação do Centro Santo Dias de Direitos Humanos. Seu primeiro presidente, o promotor de Justiça Hélio Bicudo, considerava Dom Angélico “a voz dos que não tinham vez”. “Durante os anos de chumbo impostos pela ditadura militar há bem pouco tempo, ele enfrentou a repressão com coragem e audácia”, escreveu em 2012. Para o dominicano Frei Betto, preso político de 1969 a 1973, Dom Angélico é “um homem extremamente amoroso e generoso, mesmo quando atacado ou ofendido, e de uma coragem evangélica invejável”.

Santo Dias, morto como Jesus Cristo

Como coordenador da Pastoral Operária da Arquidiocese de São Paulo, Dom Angélico também acompanhou de perto as greves que chacoalharam o ABC Paulista entre 1978 e 1980. ABC é uma microrregião da Grande São Paulo formada pelos municípios de Santo André, São Bernardo do Campo, São Caetano do Sul (daí a sigla ABC), Diadema, Ribeirão Pires, Rio Grande da Serra e Mauá. Nessa região ficavam as maiores metalúrgicas do país, entre as quais se destacavam transnacionais do setor automobilístico como Volkswagen, Ford, Mercedes Benz e Scania. Embora inscritas na Diocese de Santo André, as fábricas tinham um número muito alto de trabalhadores que moravam na região episcopal de São Miguel e que, sem opções de emprego perto de casa, percorriam longos trajetos para trabalhar naquelas montadoras. Assim, Dom Angélico tinha muitos operários do ABC em seu rebanho, o que acabou contribuindo para que ele se aproximasse de algumas das principais lideranças sindicais de São Bernardo do Campo e Santo André naquele período. O bispo-auxiliar de São Miguel chegou a colaborar, por exemplo, com o fundo de greve, criado para armazenar alimentos e outros produtos de primeira necessidade com a finalidade de amparar as famílias dos metalúrgicos nos longos períodos de paralisação, quando o pagamento de salários ficava suspenso.

A função que exercia na Pastoral Operária também conferiu a Dom Angélico certo protagonismo na visita do Papa João Paulo II a São Paulo, em 3 de julho de 1980. Era a primeira vez que um papa visitava o Brasil. Ao longo de doze dias, havia estado em treze capitais e em Aparecida (SP). A passagem por São Paulo foi intensa. Em menos de 24 horas, o papa desfilou em carro aberto, celebrou missa no Campo de Marte, encontrou cerca de 10 mil irmãs no Ginásio do Ibirapuera, falou para 140 mil pessoas no Estádio do Morumbi e encerrou a noite num encontro ecumênico no Colégio Santo Américo.

Ponto alto da visita a São Paulo, o ato no estádio do Morumbi foi oficialmente intitulado “encontro com os operários”. No palco, debaixo de chuva e sob um frio de 11 graus, Dom Angélico e Dom Paulo, ladeados por Dom Celso e Dom Fernando, fizeram as honras da casa e tudo o que estava a seu alcance para garantir a participação do metalúrgico Waldemar Rossi, membro da pastoral e da oposição sindical de São Paulo. Preso duas vezes pela ditadura e torturado no Dops de São Paulo em 1974, Rossi havia escrito um discurso de catorze parágrafos, que se estenderia por doze minutos cronometrados. Em sua fala, denunciaria o desemprego, o custo de vida, a perseguição aos trabalhadores, a truculência policial e as violações de direitos que ainda persistiam no país. Foi obrigado a reduzir o texto na hora, sob a alegação de que não haveria tempo para ler tudo. Leu apenas três parágrafos e, emocionado, abraçou o Papa aos prantos.

— Não chorei por nervosismo, imagine, mas por conta da pressão por ter de cortar meu depoimento — Rossi declarou em entrevista ao jornal O Estado de S. Paulo, vinte e sete anos depois. — Só deixei o começo e a última parte. O miolo, que era o trecho mais pesado, com denúncias claras contra os ataques aos sindicalistas, ficou de fora.

Depois dele, o papa falou por uma hora.

— O bem comum requer que a sociedade seja justa — discursou. — A primeira e fundamental preocupação de todos e de cada um deve ser esta: dar trabalho a todos. (…) A economia só será viável se for humana, para o homem e pelo homem.

Por fim, como se ele, um papa conservador, tivesse incorporado o progressista Paulo VI ao desembarcar em São Paulo, o Papa João Paulo II repetiu algumas vezes, em português, o que parecia assumir a forma de um mantra:

— Justiça social! Justiça social!