2. Um humanista

em formação

Angélico Sândalo Bernardino nasceu em 19 de janeiro de 1933,

em Saltinho, então distrito de Piracicaba, região do médio Tietê, no interior de São Paulo. O bairro tinha cerca de 300 habitantes nos anos 1930.

Era apenas uma rua, segundo o bispo.

O resto da população do distrito, em torno de 3 mil pessoas, residia na zona rural. Mais tarde, com o processo de urbanização, Saltinho cresceu o suficiente para que parte dos moradores passasse a reivindicar independência. A emancipação viria em 1991. Em 2021, o IBGE estimou 8.498 habitantes no município.

Angélico cresceu sem Sândalo. Sua certidão de nascimento registra somente o sobrenome do pai, como era costume entre os descendentes de italianos na primeira metade do século XX. Sobrenome vigoroso, resultante de uma afetuosa declinação de Bernardo – que, na origem germânica, significa “forte como um urso” (Bär + hart).

O sobrenome materno foi incorporado na juventude, por iniciativa própria, mas jamais introduzido oficialmente nos documentos. Angélico sentia-se desconfortável com aquela mania um tanto machista de transmitir à geração seguinte apenas o nome paterno. E achava tão bonito o sobrenome da mãe… Sândalo é uma árvore de origem indiana, mundialmente conhecida em razão do óleo essencial preparado a partir de sua madeira, sobretudo das cascas, utilizado em perfumes e difusores. “Sê como o sândalo, que perfuma o machado que o fere”, diz um conhecido provérbio, atribuído ora a Buda, ora a Confúcio, ora à tradição oral portuguesa. Não bastava ser “angélico” e “forte como um urso”, saberia o jovem seminarista impregnar com sua essência aqueles que, porventura, viessem a agredi-lo? Seus contemporâneos dizem que sim.

Para Dom Angélico, todos são “irmãos”,

inclusive opositores, detratores e aqueles que o perseguiram, em diversos momentos de sua trajetória.

Mas isso foi depois. Em 1933, quando Angélico nasceu, não havia machado por perto, nem a necessidade de perfumá-lo. O que havia eram enxada, foice e arado. Seus pais, Duílio Bernardino e Catarina Sândalo Bernardino, eram filhos de italianos que se estabeleceram no interior de São Paulo para trabalhar na roça nos anos 1920. Angélico foi a quinta criança numa família de nove: seis meninas e três meninos. Olívio, o primogênito, morreu antes de completar o primeiro aniversário. Tempos difíceis naquele mundo velho, cheio de porteiras, numa época em que, segundo o censo de 1930, quinze em cada cem crianças nascidas vivas na região Sudeste morriam antes de completar 1 ano. Um país de muita saúva e pouca saúde, como escrevera Mário de Andrade no livro Macunaíma, de 1928. Os outros vingaram: Antônio, Irene, Ernesta, Angélico, Maria, Inês, Lília e Cecília. Em 2021, estavam vivos Ernesta, Angélico, Maria e Inês.

Duílio era agricultor. Lavrador de terra alheia, nunca proprietário. “Plantava arroz, feijão, milho, fumo e, ainda, no meio da lavoura, melancia e pepino. Possuía duas éguas para o trabalho”, escreveu Dom Angélico em depoimento para o livro Dom Angélico Sândalo Bernardino: bispo profeta dos pobres e da justiça, coordenado por Waldir Aparecido Augusti e publicado em 2012. Catarina era dona de casa. Cuidava da comida e das roupas da filharada, cultivava flores, chás e verduras. “Comida jamais faltou em casa: arroz, feijão, polenta, ovo, leite e café. Aos domingos, macarronada e um frango para dez”, contou.

Catarina e Duílio, pais de Dom Angélico
Os pais de Dom Angélico, Catarina Sândalo, dona de casa, e Duílio Bernardino, lavrador. Nascido em 19 de janeiro de 1933 em Saltinho, distrito de Piracicaba (SP), Angélico é o quinto de nove irmãos e irmãs.
Com os pais e os irmãos em Sorocaba
Em Piracicaba, o casal Duílio e Catarina, ao centro, com sete dos oito filhos vivos: Lilian, Ernesta, Maria, Antonio (atrás), Angélico, Inês e Irene. Está faltando a irmã Cecília.
Com os pais junto a uma placa indicando a direção de sua cidade natal Saltinho antigo distrito de Sorocaba emancipado em 1991
Com o pai (de terno claro) e a mãe, Angélico posa ao lado de uma placa de trânsito indicando a rota para Saltinho, agora um jovem município, emancipado de Piracicaba nos últimos dias de 1991.
Com os pais e o irmão mais velho Antonio
Em Piracicaba, Angélico confraterniza com os pais, Catarina e Duílio (sentados) e o irmão mais velho, Antonio (à esq.), único do sexo masculino desde a morte de Olívio, o primogênito, poucos meses após o nascimento.
Com o irmão Antonio e todas as irmãs em Piracicaba
Já bispo emérito de Blumenau (SC), Dom Angélico volta a Piracicaba para um raro encontro com todos os irmãos. Além de Antonio, ao seu lado, estão presentes as seis irmãs.

Católicos praticantes, os pais introduziram logo cedo os filhos na fé e na leitura do Evangelho. Uma das tias, Teodomira, havia abraçado a vida religiosa, como franciscana do Coração de Maria. Batizado quando tinha dois meses e iniciado no rito eucarístico aos 7 anos, Angélico virou coroinha na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, em Saltinho, quando tinha 8. Uma vez por semana, calçava sapatos, coisa que nunca tivera, e ia ajudar na missa. Aproveitava para ouvir o conjunto de música que tocava na igreja, nos cultos e celebrações. O futebol podia esperar.

Aos 10 anos, decidiu abandonar a função de coroinha. Padre Nazareno Maggi, simpático e divertido, tinha sido substituído por Padre Oscar Serra de Amaral, que Angélico considerou antipático e carrancudo. Auxiliá-lo foi se tornando um serviço penoso e enfadonho. Catarina não gostou da decisão do filho. Parou de varrer o quintal, olhou bem para o menino e apontou o cabo da vassoura: “Nada disso, você vai continuar coroinha”, decretou.

— O argumento foi convincente — diz o filho, debochado.

— Bendita vassoura!

Bendita vassoura: o início da vocação

Naquela época, a educação formal foi se constituindo um fardo na vida do menino. Ele odiava ficar na sala de aula, sentia-se abafado, não memorizava a tabuada nem por decreto. Olhava mais para a janela do que para o quadro-negro. No primeiro ano do Grupo Escolar de Saltinho, em 1940, Angélico foi reprovado. Os demais, superou a duras penas, obtendo tão-somente as notas mínimas para escapar do vermelho, valendo-se muitas vezes de colas. Nelas, ele garante que se saía muito bem.

Por volta dos 10 anos, concluindo o curso primário, uma reviravolta na infância de Angélico definiria seu futuro. O carrancudo Padre Oscar costumava perguntar à garotada quem gostaria de ser padre. Numa dessas ocasiões, Angélico e outros dois ou três colegas levantaram a mão: “Eu quero!”

— E eu lá sabia o que era ser padre, meu irmão? Levantei a mão sem ter a menor ideia do que isso significava.

O menino foi convidado a morar na casa paroquial. Duílio e Catarina não se opuseram. Angélico foi.

Dom Angélico descreve Padre Oscar como um homem culto, filho de pais letrados – o que era pouco usual naquela época e naquela região –, que falava diversos idiomas e era autoritário ao extremo. Estourava de forma desproporcional diante da algazarra das crianças e se desentendia com frequência com os colegas, dentro e fora do clero. Era meio estúpido, grosseirão, segundo Dom Angélico. Morando na casa do padre, o então coroinha passou a auxiliar o padre nas atividades diárias. Ia buscar a marmita na hora do almoço, fazia compras miúdas, levava e trazia recados como um contínuo em formação. Também passou a viver o dia a dia da Igreja, até ter idade para ingressar no seminário menor, o primeiro estágio da formação religiosa clássica.

Como a diocese de Piracicaba, desmembrada havia pouco da diocese de Campinas, ainda não tinha seminário nos anos 1940, Padre Oscar matriculou Angélico no Seminário Diocesano de Sorocaba. O menino tinha acabado de completar 13 anos quando ingressou ali, em regime de internato, no dia 2 de fevereiro de 1946. A temporada em Sorocaba durou pouco. Seu mentor logo se desentendeu com o bispo de Piracicaba e foi transferido para a diocese de São Carlos, também no interior paulista, em 1948. Angélico se mudou junto com Padre Oscar. Terminou o primeiro ciclo de estudos no Seminário da Diocese de São Carlos e, em 1951, aos 18 anos, matriculou-se no Seminário Central do Ipiranga, na capital, onde cursou filosofia até 1953.

Foi em São Paulo, no finalzinho do curso, que a vocação de Dom Angélico deu sinais de desgaste e alguma corrosão.

Padre? Para sempre?

O jovem de Saltinho não se sentia pronto para esse salto. Ainda moço, cheio de vida, olhava as meninas e ficava encantado. Ao completar 20 anos, decidiu pedir um tempo, como fazem os técnicos nas partidas de vôlei ou basquete. Deixou o seminário no último semestre, ainda incompleto, e tomou o ônibus para Ribeirão Preto com o objetivo de contar sua decisão ao Padre Oscar – ele já havia se mudado outra vez, da diocese de São Carlos para a de Ribeirão.

— Que bom — respondeu o mentor, com uma expressão que Angélico nunca decifrou se de entusiasmo, ironia ou resignação.

Angélico sentiu-se desobrigado do sacramento da ordem e dos votos que viriam com ele: a castidade, o celibato, a obediência. Mas o que fazer agora? Padre Oscar recomendou que o ex-seminarista arrumasse um emprego, buscasse uma profissão. Fora da igreja, com 20 anos recém-completados, o rapaz precisaria ganhar a vida. Em Piracicaba, para onde sua família havia se mudado, trocando a roça pela “cidade”, o irmão Antônio arranjara emprego como caldeireiro numa metalúrgica. Mais tarde abriria a própria oficina. Duas de suas irmãs eram empregadas domésticas. Uma era operária. O mentor carrancudo sugeriu que Angélico, já formado em filosofia e falando mais de um idioma, ficasse em Ribeirão Preto. Quem sabe ele não recomeçasse a vida por ali mesmo.

Cidade rica e promissora, cercada de grandes fazendas, com um número crescente de empresas e mais de uma faculdade, Ribeirão Preto se tornara uma cidade universitária. A Escola de Farmácia e Odontologia, mais tarde batizada de Unaerp, funcionava ali desde os anos 1920. Agora, em 1952, a USP acabara de inaugurar um campus em Ribeirão, com uma elogiada faculdade de medicina. Centenas de jovens chegavam e partiam todos os anos. Dali a três décadas, Ribeirão ganharia o apelido de Califórnia Brasileira.

Angélico, que não tinha mais do que uma pequena mala, instalou-se numa pensão para rapazes na Rua General Osório, próxima à Catedral, ao Theatro Pedro II e à Choperia Pinguim, e foi dar aulas particulares de português e francês. Dividia o quarto com outros dois estudantes. Em alguns meses, uma jovem que morava na casa ao lado, uma pensão para garotas, despertou sua atenção – e um pouco mais do que isso.

— O coração balançou — ele diz.

Namorar, naquela época, não era como é hoje, o bispo faz questão de anotar.

Era tudo muito comportado, sem essa de barba-cabelo-e-bigode. O nome da rosa se perdeu nos escaninhos da memória. Pelo menos é o que diz Dom Angélico. Talvez ele tenha se esforçado para esquecê-la. Discreto, Dom Angélico prefere não se estender no assunto. Até porque as eventuais testemunhas já não estão aqui para confirmar.

Terminado o namoro, as aulas particulares passaram a ocupar a maior parte de seus dias. Mas havia algo incompleto, inconcluso, que fazia Angélico se sentir novamente sem rumo, como nos últimos meses no seminário, um ano antes. Foi aí que Angélico conheceu o arcebispo de Ribeirão, o pernambucano Dom Luís do Amaral Mousinho.

— Fiquei sabendo que você era seminarista — o arcebispo comentou. — Você não pensa mais em ser padre?

— De vez em quando isso me vem à cabeça – o jovem reconheceu. — Outras horas penso em namorar, em me casar.

— Pense melhor.

Dom Luís convidou o rapaz para trabalhar no Diário de Notícias, o jornal da diocese. Datilografando à máquina como quem cata milho, usando apenas o dedo indicador, Angélico aprendeu o ofício na marra. Virou jornalista sem formação na área, uma espécie de rábula das notícias, coisa muito comum naquela época. A primeira escola superior de jornalismo do país, a Cásper Líbero, fora inaugurada poucos anos antes, em 1947, e nenhum dos grandes jornalistas tinha diploma. No início de 1955, Angélico já estava sindicalizado e com matrícula no MTPS, o Ministério do Trabalho e Previdência Social – similar ao registro profissional dos jornalistas, hoje conhecido como MTb (de Ministério do Trabalho) – que lhe permitiria atuar como jornalista “de carteirinha”.

O trabalho na redação muitas vezes se estendia até as mesas do Pinguim. Angélico pegou gosto por aquela rotina, a apuração das matérias, a redação, a cerveja com os colegas depois do expediente, e foi se inspirando também na convivência com Dom Luís, orientador vocacional do jovem repórter em meio a muitas dúvidas e hesitações. Aos poucos, a vocação voltou a cochichar em seus ouvidos. Ainda era 1955 quando ele decidiu voltar ao seminário. Tinha 22 anos quando trocou Ribeirão pela região metropolitana de Porto Alegre (RS). Por orientação de Dom Luís, matriculou-se no Seminário Maior de Viamão (RS), onde concluiu o curso de filosofia e, por quatro anos, cursou teologia.

Segundo Dom Angélico, aquele seminário, fundado um ano antes, era a “menina dos olhos” do então arcebispo de Porto Alegre, Dom Vicente Scherer. Desde sua nomeação, em 1947, ele havia se empenhado numa ampla campanha de arrecadação de fundos junto à comunidade local a fim de financiar a construção do edifício e a instalação dos cursos. Recém-inaugurado, o seminário recebia vinte novos seminaristas a cada ano. Os jovens vinham principalmente da Arquidiocese de Porto Alegre, mas também de outras dioceses da Região Sul, como Santa Maria (RS), Florianópolis (SC) e Joinville (SC). De São Paulo, Dom Angélico diz que foram cinco seminaristas na mesma leva que ele, entre os quais Mauro Morelli, que cursou filosofia em Viamão e, em seguida, concluiria os estudos de teologia em Baltimore, nos Estados Unidos.

Dos 22 aos 26 anos, Angélico mergulhou na leitura do Evangelho, da doutrina católica, de hagiografias e encíclicas papais, das obras de Santo Agostinho e Tomás de Aquino – o frade italiano que registrou na Suma Teológica (séc. XIII) conceitos como o direito de julgar as ações dos governantes e o direito de resistência contra a opressão do tirano – e foi conhecendo mais a fundo o que poderia esperar da vida eclesial. Principalmente, encantou-se com o testemunho de Jesus Cristo, aquele que expulsava os vendilhões do Templo, que ensinava seus seguidores a amarem-se uns aos outros, que prometia o Reino dos Céus a quem tem fome e sede de justiça. De todos os autores que estudou no curso de filosofia, nenhum causou tanta empatia e despertou tanta admiração no jovem Angélico do que aquele filho de marceneiro que nasceu numa manjedoura e que ele, seminarista, passou a considerar o maior de todos os filósofos.

O Seminário de Viamão era sua escola e sua casa. Somente nas férias, Angélico tomava um ônibus para São Paulo e outro para Piracicaba: três dias na estrada para encontrar a família e passar alguns dias na terra natal. Visitava também Ribeirão Preto, cidade que escolheu como diocese, antes mesmo da ordenação.

No outono de 1959, enviou um convite para seus pais, em Piracicaba:

Exmo. Sr. Duílio Bernardino, mamãe e manas.

O Diác. Angélico Sândalo Bernardino, que, por graça de Deus, será admitido ao Sacerdócio de Cristo pela imposição das mãos de S. Excia. Revma. D. Luís do Amaral Mousinho, na Catedral de Ribeirão Preto, aos 12 de julho pf., às 8 horas, e celebrará sua Primeira Missa Solene (Piracicaba), aos 19 de julho, 9 horas, quer fazer de V. Excia. um conviva de suas alegrias sacerdotais, unidos no mesmo hino de Ação de Graças.

Viamão, junho de 1959.

Os irmãos se cotizaram para alugar um ônibus e marcar presença no dia 12 de julho de 1959. O filho de lavrador, que andava descalço e colava nas provas, foi ordenado por Dom Luís do Amaral Mousinho. Uma semana depois, o agora Padre Angélico celebrou sua primeira missa, na Matriz de Saltinho. Antônio Bernardino, o irmão mais velho, foi um dos paraninfos da cerimônia. Padre Oscar Serra de Amaral foi o padrinho. Confirmado o sacramento da ordem, Padre Angélico ainda precisou voltar a Viamão para o último semestre de teologia.

Em janeiro de 1960, Padre Angélico desembarcou mais uma vez em Ribeirão Preto, munido de sua malinha, agora para ficar. A convite do arcebispo, instalou-se no palácio episcopal. Dom Luís do Amaral Mousinho esperava por ele. Indicou-lhe um quarto e o convidou a retomar o trabalho no Diário de Notícias, agora como redator-chefe: um emprego que, muito em breve, lhe traria problemas com os militares.