5. O militante
que peitou o

governador

Em 1980, a região episcopal de São Miguel Paulista tinha cerca de 1,7 milhão de habitantes.

O equivalente à soma das populações de Campinas, Santo André e Guarulhos – respectivamente o segundo, o terceiro e o quarto municípios mais populosos do Estado.

Apesar de toda essa gente, havia na região um único hospital público e uma única creche da Prefeitura. Em Guaianases, um dos distritos mais estigmatizados, uma em cada dez crianças morria antes de completar 1 ano. As estatísticas também colocavam Guaianases no topo do ranking da criminalidade.

Ao longo dos anos 1980, a atuação de Dom Angélico ajudaria a pavimentar mudanças profundas na paisagem urbana e na realidade social de São Miguel. Seus contemporâneos na Igreja e nos movimentos sociais costumam apontá-lo como um bispo de vanguarda, respeitado pela ousadia, muito parecido com Dom Paulo no sentido de “colocar o dedo na ferida”, dizer o que precisava ser dito e fazer o que precisava ser feito.

Ele era o Dom Paulo na ponta, o mais subversivo dos bispos-auxiliares — diz o teólogo Fernando Altemeyer, da PUC.

— Sempre foi o mais incisivo, o mais contundente, aquele que tirava as pessoas da zona de conforto — afirma Padre Júlio Lancellotti, vigário episcopal do povo da rua.

Para o colega Dom Mauro Morelli, que entre 1975 e 1981 foi bispo-auxiliar da região episcopal Sul, mais tarde transformada nas dioceses de Campo Limpo e Santo Amaro, e hoje é bispo emérito de Duque de Caxias (RJ), Dom Angélico é “um homem corajoso, e, ao mesmo tempo, sensível para com quem sofre.” Outro colega, Dom Celso, que foi bispo-auxiliar do Ipiranga nos anos 1970 e 1980 e, mais tarde, bispo emérito de Catanduva (SP), “Angélico era a voz profética, decidida e firme”.

Em um capítulo escrito para o livro Dom Angélico Sândalo Bernardino: bispo profeta dos pobres e da justiça, organizado por Waldir Aparecido Augusti, Dom Celso contou que o amigo era muito requisitado para defender o povo em suas justas reivindicações. “Incansavelmente, corria de um lado para outro, impedindo que o povo fosse expulso de uma invasão, defendendo a posse de terrenos cobiçados pela especulação imobiliária e até deitando-se na linha férrea”, escreveu.

O episódio é um dos mais significativos da trajetória de Dom Angélico. Em agosto de 1977, um trem de subúrbio da Central do Brasil se chocou com um ônibus no bairro de Arruda Alvim, região de São Miguel, matando vinte e duas pessoas e ferindo outras. Não havia cancela para impedir que ônibus e automóveis avançassem sobre a ferrovia durante a passagem do comboio. Em toda a extensão do ramal ferroviário, mais tarde aproveitado pela CPTM, colisões e atropelamentos eram frequentes. Aquele acidente foi a gota d’água. A população, indignada, providenciou um abaixo assinado exigindo a colocação imediata de cancelas nos cruzamentos entre a ferrovia e as ruas, e, no médio prazo, o fechamento desses cruzamentos e sua substituição por viadutos e passarelas. Foram colhidas 30 mil assinaturas. Nada aconteceu.

Em setembro, após uma assembleia em que se discutiu o que fazer, Dom Angélico foi a público avisar que as missas de domingo estariam suspensas e que todos os católicos de São Miguel estavam convidados a irem se sentar no trilho de trem junto com ele. Ficariam todos ali, obstruindo a passagem, até que a reivindicação fosse atendida. Dias depois, as cancelas foram instaladas e um plano de obras começou a sair do papel.

Dom Angélico escancarou as portas de sua igreja para acolher as reivindicações populares. Sob sua condução, a matriz de São Miguel tornou-se local de oração, mas também de reivindicação. “Sempre me impressionaram muito as plenárias que se realizavam dentro da igreja matriz de São Miguel, com a presença de Dom Angélico, às quais compareciam milhares de pessoas para discutir os problemas de seus bairros”, escreveu a ex-prefeita Luiza Erundina, que conheceu o bispo em meados dos anos 1970, quando trabalhava como assistente social na Zona Leste. “Dom Angélico não só presidia as plenárias, estimulando e contribuindo com a reflexão da população sobre os problemas da comunidade, como também participava pessoalmente das ações e dos movimentos de pressão sobre os governos, denunciando as carências do seu povo e exigindo soluções para os inúmeros problemas que até hoje o afligem no seu dia a dia.”

“Equipe dos Direitos Humanos” da Região de São Miguel Paulista
“Terra é vida”, diz o cartaz, assinado pela “Equipe dos Direitos Humanos” da Região de São Miguel Paulista, em 1984.
Encontro sobre CEBs e pastorais em 1986 - Foto: Douglas Mansur
Encontro sobre Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) e pastorais, em 1986. Destaque para o tema da moradia.
Foto: Douglas Mansur.
Encontro da Pastoral da Moradia em 1986 - Foto: Douglas Mansur
Bispo-auxiliar designado para a região episcopal de São Miguel Paulista, no extremo-leste de São Paulo, Dom Angélico coordena a pastoral dos trabalhadores e se engaja na luta dos movimentos sociais que afloram no final dos anos 1970. Em foto de Douglas Mansur, encontro da Pastoral da Moradia, em 1986.
Luta na Vila Progresso contra Ministro Funaro- 1986 / 1987
Reivindicações populares por terra, moradia e salário justo marcam as missas e os encontros na região episcopal de São Miguel, nos anos 1980. Ao fundo, perto da porta, uma faixa faz alusão à luta pela urbanização da Vila Progresso. Outra manifesta repúdio à política econômica conduzida pelo então ministro da Fazenda, Dilson Funaro. 1986.
Encontro Nacional das CEBs no Ginásio do Ibirapuera em 1986 - Foto: Douglas Mansur
Dom Angélico conduz a comitiva de São Miguel Paulista no Encontro Nacional das CEBs realizado no Ginásio do Ibirapuera, em São Paulo, em 1986.
Foto: Douglas Mansur.

Não demorou para que a igreja ficasse pequena para as assembleias convocadas por Dom Angélico e pelos movimentos sociais de São Miguel. Foi preciso ocupar a praça em frente, oficialmente chamada de Praça Pedro Aleixo Monteiro Safra e popularmente conhecida como Praça do Forró, porque sempre as atividades culturais de domingo terminavam numa grande festa regada a xote, baião e cerveja. Uma vez, em 1987, uma assembleia campal na Praça do Forró juntou mais de 5 mil pessoas, segundo a imprensa – os organizadores calcularam em 20 mil –, que decidiram ocupar a sede da administração regional. Nesse dia, o secretário municipal de Habitação havia confirmado presença na plenária. Como ele não apareceu, o povo decidiu pôr em votação a proposta de ocupar a administração regional, como forma de fazer pressão. Dom Angélico se pronunciou contrário à ocupação. Mas, como a opção por ocupar foi vencedora, não hesitou em se somar aos protestos. Quando o resto do povo chegou à administração regional, lá estava Dom Angélico. “Vamos ocupar a casa do povo!”, exortava.

Dom Angélico fala a uma multidão de quase 20 mil pessoas que lotou a Praça do Forró, em frente à Matriz de São Miguel, numa assembleia das pastorais da Terra e da Moradia, em 1987.
Foto: Douglas Mansur.
O direito à terra e à moradia digna, sem violência contra ocupações e assentamentos, são algumas das reivindicações manifestas nas faixas empunhadas em assembleia popular na Praça do Forró, em São Miguel Paulista, em 1987.
Foto: Douglas Mansur.

Houve outros momentos de inflexão semelhantes àquele. Deputado federal por São Paulo e morador de São Miguel na juventude, Paulo Teixeira não esquece o dia em que Dom Angélico peitou o então governador de São Paulo, Orestes Quércia.

— Nos anos 1980, as ruas não tinham asfalto, esgoto nem iluminação — lembra. — As comunidade lutavam por saneamento, luz, creche, escola e moradia.

Certo dia, em 1987, soldados da Polícia Militar avançaram com truculência sobre uma ocupação no Itaim Paulista, provocando ferimentos em mais de quarenta pessoas. Dom Angélico acusou o governador Orestes Quércia, recém-empossado, de ser omisso e criminoso depois do episódio.

“D. Angélico acusa governo do Estado de ‘atitude canalha’”,

estampou o jornal Folha de S.Paulo no dia 25 de abril.

— Quércia respondeu que não brigaria com o bispo para não correr o risco de ir para o inferno — conta o deputado, administrador regional de São Miguel de 1991 a 1993.

Ainda assim, a despeito do timbre inflamado e do temperamento intempestivo, que os amigos costumavam atribuir ao “sangue italiano” do bispo, o protesto surtiu efeito. Meses depois, a Assembleia Legislativa aprovou um incremento de 1% no ICMS a fim de bancar a construção de moradias populares e o governo reestruturou o órgão que, em seguida, foi batizado de Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU). Uma política estadual para a habitação começava a ser implementada.

Dom Angélico se fez presente, como protagonista ou apoiador, nas mais diferentes reivindicações do povo pobre e periférico naqueles combativos anos 1970 e 1980. Ajudou a acolher na Zona Leste os cursos de fé e política do Centro de Educação Popular do Instituto Sedes Sapientiae (Cepis). Esteve ao lado de Paulo Freire em palestras sobre educação popular e emancipação. Trabalhou junto com grupos de mães e da área de saúde para garantir a instalação de creches e hospitais onde esses equipamentos inexistiam.

De todas – e eram muitas –, a luta por moradia foi, muito provavelmente, a que mais se destacou na militância de Dom Angélico, e a que resultou em transformações mais significativas.

— O que conhecemos como movimento de moradia nasceu a partir do trabalho das pastorais, principalmente da Pastoral do Mundo do Trabalho, nos anos 1970, e das pastorais da Terra e da Moradia, nos anos 1980, que organizaram as primeiras campanhas bem-sucedidas por ocupação de terras e por regularização fundiária — diz o teólogo Waldir Aparecido Augusti, assessor das pastorais sociais de Ermelino Matarazzo.

Naquele período, a Igreja chegou a adquirir terrenos a fim de promover seu loteamento e sua conversão em conjuntos residenciais. Outras vezes, padres e bispos solidarizavam-se com os sem teto e prestavam assistência social ou apoio jurídico nas dezenas de ocupações que pipocavam nas franjas da cidade. O Padre Antonio Luís Marchioni, conhecido como Padre Ticão, foi durante muitos anos representante local da Pastoral da Terra e principal parceiro de Dom Angélico nas lutas por moradia. Pároco da igreja São Francisco de Assis, em Ermelino Matarazzo, atuava na ponta, em acampamentos e mutirões, e chegou a ser preso em razão dessa atuação. Juntos, foram responsáveis por viabilizar loteamentos em toda a região de São Miguel. Padre Ticão faleceu no primeiro dia de 2021.

Um trágico episódio ocorrido na Zona Leste contribuiu para a criação da Pastoral da Moradia. Em março de 1987, dias antes do entrevero entre Dom Angélico e Orestes Quércia, o pedreiro Adão Manoel da Silva, de 29 anos, foi morto com um tiro na cabeça, disparado por um dos mais de 150 agentes da Guarda Civil Metropolitana enviados ao Jardim Nazaré, distrito de Itaim Paulista, para uma reintegração de posse. O terreno, vazio, pertencia à Prefeitura. Os trabalhadores haviam dado início à construção das primeiras casas, em sistema de mutirão. Ao chegar, os guardas derrubaram as paredes que já tinham sido erguidas e agrediram os acampados, que revidaram com pedras, culminando nos disparos. O episódio está documentado no curta Há lugar: ocupações na Zona Leste, de Julio Wainer e Juraci de Souza.

No filme, de 1987, Dom Angélico explica o que chama de direito à terra:

“Cabe ao poder público rever, mas rever profundamente, a situação da terra neste país. Para que nós tenhamos reforma agrária e reforma urbana. Porque a terra que está sem função social é uma terra roubada, uma terra iníqua. Não é justo. A lei que protege a malfadada propriedade particular sem função social tem que ser mudada. A Constituinte, se não fizer isso, será uma Constituinte de lixo. A serviço do luxo, e não do povo brasileiro.”

Dom Angélico volta à cena em outro trecho do filme:

“Eu sempre digo que a ocupação não resolve, mas ela é um sinal, sacode aqueles que dormem. Colocam, inclusive, o governo correndo um pouco. (…) O sistema reage dessa forma. Quando ele percebe que o povo se organiza, se mobiliza em determinado lugar, então o sistema corre e oferece logo vinte mil casas para a população”.

A Pastoral da Moradia foi fundada seis meses depois, como desmembramento da Pastoral da Terra. Em 1988, a Constituição Federal recepcionou o conceito de função social da propriedade em seu artigo 5º. Nos incisos XXII, XXIII e XXIV, a Carta Magna garante o direito de propriedade, determina que “a propriedade atenderá a sua função social” e define que “a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição”.

Ainda hoje, o conceito de função social da propriedade não tem sido suficiente para coibir a especulação imobiliária e garantir aos mais pobres o direito à moradia. Mas é inegável que, ao longo das décadas de 1980 e 1990, a atuação da Igreja Católica junto aos movimentos sociais logrou garantir a regularização de muitos lotes, levando infraestrutura e equipamentos para muitos bairros que nasceram de ocupações.

A luta por moradia e o direito de ocupar

O legado de Dom Angélico é perceptível em muitas conquistas sociais que ele ajudou a catalisar e nas muitas homenagens feitas a ele, em vida, sobretudo no fundão da Zona Leste. No distrito de Cidade Tiradentes, a 35 quilômetros da Praça da Sé, foi inaugurado em 2009 o Conjunto Residencial Dom Angélico, antiga ocupação que foi regularizada e construída nos anos 2000, com 221 lotes. Há, também, a UBS Dom Angélico, inaugurada em 1996, fruto de uma importante reivindicação do movimento de saúde local. E uma escola de Ensino Fundamental, a Escola Estadual Jardim Dom Angélico, no Conjunto Habitacional Sítio Conceição, também na Cidade Tiradentes.

Nos quinze anos em que atuou em São Miguel, Dom Angélico nunca deixou de lado a atividade de jornalista. Além de atuar como bispo-auxiliar e coordenador da Pastoral Operária, foi designado por Dom Paulo para ser o jornalista responsável pelo jornal O São Paulo, semanário da Arquidiocese fundado em 1956.

— Acho que ele me escolheu por exclusão,

porque eu tinha a carteirinha do sindicato e alguma experiência anterior no Diário de Notícias — justifica, modesto.

Quando ainda era bispo-auxiliar na região Norte, o próprio Dom Paulo fora diretor de O São Paulo, e manteve a função por algum tempo, mesmo depois de se tornar arcebispo. O semanário, receptivo à ditadura militar por ocasião do golpe – como quase toda a imprensa paulista na época, convencida de que o levante dos militares evitaria uma revolução comunista no Brasil –, foi corrigindo a linha editorial a partir de 1966, já sob Dom Paulo, e, em 1968, chegou a publicar manchetes contra a repressão. “Expulsão de padres: expulsão viola ‘direitos do homem’”, foi uma dessas manchetes, publicada em letras graúdas no topo da primeira página da edição de 15 de dezembro de 1968, a primeira após o AI-5. “CNBB afirma: não confundimos a paz verdadeira com o silêncio imposto pelo medo” e “Ditadura mata operário cristão” foram outras.

Ao longo dos anos 1970 e 1980, O São Paulo foi um importante canal de denúncia da violência praticada pela repressão e um veículo comprometido com a defesa dos direitos humanos, contribuindo inclusive para a divulgação desse conceito. Em 1973, às vésperas do aniversário de 25 anos da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a equipe do jornal editou e distribui 200 mil exemplares de um livreto com a íntegra daquele documento da ONU, acrescido de citações da Bíblia para cada artigo e de algumas das declarações oficiais mais importantes do Conselho Mundial de Igrejas e da Igreja Católica. Houve outra edição em seguida e, em 1978, na efeméride dos 30 anos, outras duas edições, de 500 mil e 1 milhão de exemplares, respectivamente.

O São Paulo foi censurado de diferentes formas, com maior ou menor intensidade conforme a conjuntura, entre 1971 e 1978. Num primeiro momento, as orientações chegavam por telefone: corta isso, muda aquilo. A partir de 1976, o controle se tornou mais rigoroso. Uma cópia impressa da edição, com todas as reportagens, fotografias e anúncios, deveria ser encaminhada à sede da superintendência regional do departamento da Política Federal de São Paulo, na Rua Xavier de Toledo, 280, terceiro andar, até as 17h de quinta-feira. As regras foram especificadas num ofício de 26 de julho de 1976. “Cumpre esclarecer que não será permitida a substituição da matéria vetada, sendo obrigatório o preenchimento de espaços relativos aos vetos que ocorrerem com o material normalmente aprovado”, dizia o texto. “E, se não houver, o editor diminuirá o número de páginas da edição”. O documento ainda explicitava que três exemplares corrigidos deveriam ser levados ao mesmo endereço para “conferência e liberação, se for o caso”.

A partir daquele dia, as edições de O São Paulo passaram a exibir, com frequência, amplos espaços em branco disfarçados de “calhau”, jargão que designa o anúncio do próprio veículo e que é usado, geralmente, quando um espaço reservado para a publicidade não é comercializado a tempo. No centro do espaço em branco, uma única frase: “Leia e divulgue O SÃO PAULO”.

Em 20 de agosto de 1982, uma edição falsa do jornal circulou com a seguinte manchete: “Mea culpa”. Sob ela, uma fotografia de Dom Paulo. A suposta reportagem atribuía ao cardeal declarações de autocrítica e um hipotético compromisso de operar mudanças na Igreja de São Paulo. “O cardeal Arcebispo de São Paulo, D. Paulo Evaristo Arns, em visita à redação deste semanário, fez entrega de uma mensagem que representa um verdadeiro grito de alerta ao povo brasileiro”, dizia o texto, nem sempre escrito com o rigor habitual, mas com uma paginação e uma fonte que em muito se assemelhavam ao verdadeiro jornal. “Acompanhado de D. Angélico Sândalo Bernardino e Pe. Ismael Matignago, respectivamente diretor e redator chefe de O São Paulo, o cardeal Arns reuniu representantes do Conselho Editorial, da Redação e alguns colaboradores para apresentar novas diretrizes de atuação para a Arquidiocese de São Paulo. ‘Minha mensagem representa um Mea Culpa por tudo aquilo que vem acontecendo de errado na Igreja do nosso tempo’ — disse emocionado o Cardeal Arns”.

Em seguida, ainda como se reproduzisse falas de Dom Paulo, o jornal fraudulento tecia críticas ao marxismo e a “estranhas teologias que pretendem acobertar desde a desobediência silenciosa até a discordância explícita”. Os responsáveis pela falsificação nunca foram identificados.

Simultaneamente à direção do O São Paulo, Dom Angélico manteve um programa semanal na Rádio América AM, emissora católica dos irmãos Paulinos e que mais tarde passou a integrar a Rede Canção Nova de rádio. O programa “Bom dia, trabalhador!” era transmitido às 5h30 da manhã, de modo a encontrar os operários nas primeiras horas do dia, a caminho das fábricas ou nas trocas de turnos. Não bastasse, Dom Angélico também editava os folhetos litúrgicos, que são aqueles que os fiéis acompanham durante a missa. Além da estrutura do rito eucarístico, dos cânticos e das leituras do Evangelho, Dom Angélico cuidava de introduzir comentários ao longo do texto, que servissem de indicativos para a homilia e funcionassem como gatilhos para despertar a consciência dos presentes. Assim, uma passagem bíblica como a da cura do leproso por Jesus poderia merecer duas ou três linhas sobre a falta de hospitais em muitas comunidades e a importância de reivindicar melhorias no sistema de saúde.

Dom Angélico foi também o jornalista responsável – e principal fiador – do jornal Grita Povo. Com edições mensais num primeiro momento e, a partir de 1984, quinzenais, o tabloide lançado em 1982 era concebido, escrito e diagramado numa sala na torre da igreja matriz de São Miguel, sob a direção do então Padre Carlos Strabelli. Depois de um número zero, publicado em julho, que trazia a frase “Cadê a abertura?” estampada na primeira página, junto a uma fotografia dos padres franceses Aristides Camio e François Gouriou – condenados pela Justiça Militar juntamente com treze posseiros por, supostamente, incitar a desordem e a violência na região do Araguaia –, o número 1 saiu em agosto, três meses antes da eleição para governador, senador e deputados federal e estadual.

A manchete da primeira edição escancarava a postura combativa que se buscava imprimir ao jornal: “São Miguel é o maior reduto da oposição”. O título se apoiava nos resultados do pleito de 1978, no qual a oposição obtivera 94% dos votos, segundo o jornal. No editorial, um apelo para que os leitores soubessem repetir a dose. “São Miguel sempre foi reduto da oposição. Esperamos que isso se repita no dia 15 de novembro, se tiver eleição, é claro”, dizia o texto. “É preciso votar consciente (…) e selecionar os candidatos que irão defender, com unhas e dentes, os nossos direitos”.

Ao longo dos primeiros meses, a equipe responsável pela produção editorial foi fazendo pequenos ajustes até encontrar o tom definitivo. Evitavam-se conceitos demasiadamente abstratos e palavras pouco conhecidas. Priorizavam-se, ao contrário, o relato do cotidiano, os comentários, as histórias de vida, e um tipo de oposição calcado nos problemas reais da comunidade. Dom Angélico assinava os editoriais, os textos de opinião, invariavelmente estabelecendo pontes entre as lutas da gente da Zona Leste e o testemunho de Jesus Cristo. Em oito páginas, sucediam-se matérias e notas sobre loteamentos clandestinos, regularização fundiária, comunidades eclesiais de base, pastoral da terra, cultura popular, sucessão no sindicato dos metalúrgicos de São Paulo.

Tudo no Grita Povo buscava refletir as demandas da classe trabalhadora. Problemas como desemprego, desigualdade social, déficit de moradia, saneamento e infraestrutura ocupavam espaço nobre na publicação: uma pauta essencialmente local, que não encontrava repercussão nos jornalões, e por isso eram lidos, debatidos, fixados nas paredes das igrejas. Completando o cardápio de pautas e editoriais, textos que se propunham a superar e reparar o racismo, dar visibilidade aos direitos das mulheres (e àquilo que, anos depois, ficaria conhecido como equidade e paridade de gênero), combater a corrupção e a negligência dos governos foram preenchendo as páginas do jornal, entre charges, tirinhas e ilustrações, com linguagem simples e sem tergiversar. Na primeira página, sob o título do jornal, o lema: “Um ato de legítima defesa”. Fazia sentido.

— Tenho mania de fundar jornais.

E sou devoto dos pequenos meios de comunicação, porque esses são realmente lidos e ouvidos pelo povo.

Na opinião de Dom Angélico, a população de baixa renda não consome os veículos da chamada grande imprensa em razão do custo e da linguagem menos acessível. Quando cai um folheto em suas mãos ou chega um jornal concebido para ele, para sua região e sua classe social, aí ele lê. Neste sentido, Dom Angélico sempre defendeu a produção de jornais populares e rádios comunitárias como instrumentos de formação na periferia. E sempre recomendou que fossem feitos pela própria comunidade, do povo para o povo, e batalhou para que projetos de comunicação popular ganhassem alguma centralidade e incentivos por parte da cúpula da Igreja, um apoio que nunca chegou.

Para produzir o Grita Povo, com colaboradores voluntários e apoio financeiro de uma organização católica da Alemanha, foi formado o Centro de Comunicação e Educação Popular “Manoel do Ó”, precursor do Centro de Comunicação e Educação Popular de São Miguel, o CEMI, assim registrado em 1983. Além do jornal, a equipe do CEMI, liderada pelo padre Carlos Strabelli e pela jornalista Regina Festa, conduzia uma série de outros projetos de comunicação e formação popular, que incluía a edição de cartilhas, oficinas de vídeo e até a gestão de rádios populares, as “rádios-corneta”, cuja programação era transmitida em autofalantes fixados em postes nas comunidades.

— A proposta de Dom Angélico sempre foi capacitar as pessoas para se tornarem comunicadores — conta a jornalista e pesquisadora Regina Tavares de Menezes, que integrou a equipe do CEMI e pesquisou seus arquivos.

Tanto os jornais quanto as rádios, segundo Regina, não traziam apenas notícias, mas eram concebidos também com o compromisso de resgatar a memória da região. Dom Angélico, segundo ela, dizia que as pessoas só teriam voz se conhecessem a si mesmas, sua história e a de seus antepassados. Nas páginas do Grita Povo, os leitores se deparavam com personagens normalmente ocultados nos grandes grupos de mídia: Margarida Alves, Manoel Fiel Filho (link externo), Santo Dias (link externo). Além disso, acompanhava o dia a dia das ocupações, dos movimentos sociais, desempenhava um importante papel de zeladoria, noticiando problemas e cobrando soluções.

— Era um projeto inspirado na pedagogia de Paulo Freire, buscando refletir uma educação emancipatória, do povo para o povo, calcada na realidade de quem realmente segurava o rojão. Desempenhou o importante papel de conscientizar e dar esperança.

No editorial da edição do Grita Povo publicada em fevereiro de 1984, tempos de campanha nacional por Eleições Diretas, é explicitada a opção pelos pobres, pela democracia e pelos direitos humanos. “O direito ao lote e à casa construída com suor e sangue é sagrado”, afirma. “Cor não é atestado de dignidade” e “o trombadinha precisa trombar um dia com escola, carinho, família, comida, direito de crescer”, diz.
Em março de 1984, a manchete de repúdio à violência parece reproduzir um grito travado na garganta e que ainda é repetido, com igual intensidade e urgência, quase quarenta anos depois, pelo povo periférico de São Paulo. “Nós queremos viver”, diz o jornal dirigido por Dom Angélico. “É preciso exigir vida de gente”. Detalhe para o slogan adotado pelo Grita Povo: “Um ato de legítima defesa”.
Em editorial de março de 1984, Dom Angélico defende eleições diretas para presidente da República e o fim da ditadura militar. “O povo brasileiro está sob o jugo de inúmeras escravidões”, diz.
O repúdio ao machismo e a defesa da igualdade de direitos era bandeira do Grita Povo nos anos 1980. “Amélia era uma boba”, diz ilustração.
A questão racial era outro tema muito presente, de forma assertiva e pedagógica, no combativo jornal de São Miguel. “Negro assumido é mais forte”. Edição de março de 1984.

Os jornalistas Gilberto Nascimento e Douglas Mansur, este dedicado ao fotojornalismo, foram dois dos colaboradores que fizeram o Grita Povo nos anos 1980, muitos deles estudantes de jornalismo, liderados por profissionais como Luiz Fernando Santoro, professor de telejornalismo na USP, e Elizabete Dantas, coordenadora executiva do CEMI.

— Hoje se fala muito em coletivos e redes de comunicadores da periferia — diz Mansur. — Essas redes já existiam há quarenta anos e era exatamente o que nós fazíamos.

— O Grita Povo era distribuído em todas as paróquias e fixado nas paredes — conta Nascimento. — Os padres faziam reflexões e homilias baseadas no que saía nos jornais. E os movimentos sociais também os utilizavam.

O Grita Povo foi reestruturado em 1984, depois de se engajar na campanha pelas Diretas e de ser descontinuado por alguns meses. O formato tabloide foi substituído pelo formato ofício, ainda mais popular, e se buscou privilegiar as colaborações produzidas pela população simples dos bairros. O jornal chegou a ter 3 mil assinantes e tiragem de 8 mil exemplares. Sobreviveu ao fim da ditadura, à volta de um presidente civil ao poder, à promulgação da Constituição Federal e à eleição de uma prefeita mulher, nordestina e periférica. Só não sobreviveu à saída de Dom Angélico.