3. O padre que
mandava ocupar

tudo

DEUS É AMOR.

O lema sacerdotal adotado por Padre Angélico foi pintado em letras maiúsculas na fachada da capela construída na favela da Vila Carvalho, na Zona Norte de Ribeirão Preto, em meados dos anos 1960.

Visto de longe, o letreiro cumpria a função de anunciar que ali, naquele local, encontraria acolhimento e oração. Quem chegasse perto o suficiente para escutar uma reunião ou uma homilia, descobriria que, mais do que uma capela, aquele era um local de encontro e organização: o epicentro de uma Comunidade Eclesial de Base, um núcleo de evangelização e ação social ao qual convergiam operários, alcoólatras, agricultores, prostitutas, pedreiros, trombadinhas e empregadas domésticas.

Deus é amor. Na tradição católica, cada padre deve escolher um lema, uma frase capaz de sintetizar seu compromisso pastoral. A maioria opta por uma citação em latim e adota também um brasão, muitas vezes encomendado a um designer. Sinal dos tempos, Padre Angélico abdicou do brasão e encontrou seu lema, em bom português, num versículo do Evangelho de João: “Aquele que não ama não conhece a Deus, porque Deus é amor” (1 João 4:8). Tal pensamento marcaria sua trajetória desde os primeiros anos de sacerdócio, quando foi morar no palácio episcopal, em 1960, junto com o bispo Dom Luís do Amaral Mousinho e outros padres, assumindo em seguida a função de cura da Catedral, ou seja, o padre responsável por cuidar daquela igreja. O trabalho na Vila Carvalho começaria um pouco mais tarde, em 1966.

Segundo a Irmã Maria do Carmo Santos Bairão, congregada nas Missionárias de Jesus Crucificado que colaborou por muitos anos com os trabalhos de Dom Angélico no bairro, o convite foi feito por uma assistente social da Legião Brasileira de Assistência, a LBA, órgão do Estado que existiu no Brasil entre 1942 e 1994. Diz ela que a assistente foi fazer uma pesquisa na comunidade a fim de listar as principais demandas, já prevendo que moradia, creche e saneamento básico estariam no topo do ranking.

— O que vocês querem de mais urgente aqui?
— Queremos um padre que venha rezar missa e nos orientar — muitos responderam.

As primeiras missas de Padre Angélico na favela foram celebradas em 1966, num local improvisado demais para ser chamado de barraco: chão de terra batida, galhos de árvore sustentando uma lona de caminhão, um resto de porta, uma placa de Brasilit e fragmentos de compensado arremedando a única parede. Uma mesa substituía o altar; cães e galinhas, o coral. Dona Leonilda, a dona do barraco ficou exultante com a presença repentina daquele jovem padre, que chegara de lambreta como quem cai do céu.

— Estou aqui para fazer uma missa — ele foi logo dizendo.

Dona Leonilda não cabia em si. Foi correndo chamar o marido e anunciar para as vizinhas que ia ter missa. Num momento de provação, anos antes, ela havia feito promessa de rezar uma missa em Aparecida. Apesar da graça alcançada, nunca havia conseguido honrar sua dívida. Agora um padre com nome de anjo vinha até sua casa para que ela pudesse pagar a promessa.

O missionário não apenas rezou a missa como voltou no domingo seguinte. A vizinhança foi se aproximando. Uma de suas primeiras sacadas foi organizar um curso profissionalizante de pedreiro na favela, com apoio da LBA. Além de contribuir para que os homens da comunidade arrumassem trabalho remunerado, a iniciativa rendeu outros frutos. Padre Angélico conseguiu material de construção junto ao Fraterno Auxílio Cristão, uma entidade sem fins lucrativos, e, já em 1967, em sistema de mutirão, alguns barracos começaram a ser substituídos por casas.

Foi aí que surgiu a capela, também construída nesse sistema, pela própria comunidade, no mesmo local coberto com lona onde as primeiras missas tinham sido celebradas. Arquitetura modesta, com telhado de duas águas, cinco metros de frente e cinco de lado, um único salão. Atrás do altar, novamente a inscrição em letras graúdas: DEUS É AMOR. No mesmo ano de 1969 em que a capela foi inaugurada, Angélico formou uma turma de crianças para a primeira eucaristia. Tudo isso foi sendo organizado sem prejuízo das outras tarefas de Angélico, que acumulava as funções de cura da Catedral e, desde o segundo semestre de 1964, de diretor do Diário de Notícias. O padre não se queixava. Sentia-se feliz por estar no caminho certo.

Naqueles turbulentos anos 1960, os estímulos chegavam por todos os lados, primeiro em sinergia com as grandes reformas populares propagadas a partir de Brasília, mais tarde como resistência. Também na primeira metade da década, ventos transformadores sopravam do Concílio Vaticano II, uma maratona de conferências convocada pelo Papa João XXIII e realizada entre 1962 e 1965 com a presença de bispos do mundo todo. O papa, já octogenário, acabou falecendo em 1963, antes de ver concluídos os trabalhos. Sua intenção era promover encontros e debates ecumênicos que resultassem em decisões capazes de auxiliar a Igreja a “tirar a poeira acumulada sobre o trono de Pedro”, espanar o que havia de velho e reacionário na estrutura do clero, atualizar e adaptar as práticas religiosas à realidade daquele tempo. A Igreja tinha uma palavra em italiano para essa oportuna “revisão”: aggiornamento.

Para Angélico, as quatro constituições, os nove decretos e as três declarações que resultaram do Concílio Vaticano II, concluído no pontificado de Paulo VI, teriam o condão de modificar profundamente a ação pastoral e a doutrina social da Igreja. “Foi o maior acontecimento da Igreja nos últimos séculos”, ele escreveu, num ensaio publicado no libreto Concílio da Primavera na Igreja (Paulus, 2012). Tais documentos defendiam a urgência de um catolicismo mais próximo do povo e que dialogasse melhor com o mundo moderno: a substituição do latim pelas línguas pátrias nas missas, a participação crescente das mulheres na liturgia, a defesa intransigente do que se convencionou chamar de “opção preferencial pelos pobres”, o firme compromisso com os que têm “fome e sede de justiça”.

Em 1968, a II Conferência Geral do Episcopado Latino-Americano, em Medellín, na Colômbia, ratificou os principais encaminhamentos do Concílio Vaticano II e a promessa de uma Igreja politizada, acessível e ecumênica. “O Episcopado Latino-americano não pode ficar indiferente ante as tremendas injustiças sociais existentes na América Latina, que mantêm a maioria de nossos povos numa dolorosa pobreza, que em muitos casos chega a ser miséria desumana”, diz uma das conclusões da Conferência. E ainda: “Um surdo clamor nasce de milhões de homens, pedindo a seus pastores uma libertação que não lhes chega de nenhuma parte.”

Um dos resultados desse intenso processo de revitalização das diretrizes e práticas católicas inaugurado no Concílio Vaticano II e aprofundado em Medellín foi o surgimento, nos estertores da década de 1960, da Teologia da Libertação. Para um grupo significativo de padres latino-americanos, enfrentar as injustiças sociais e transformar o combate à desigualdade deveriam ser os alicerces da ação pastoral no continente. No Brasil e em países vizinhos, trocar o latim pelo português ou substituir a batina pela calça jeans eram decisões oportunas, mas não evitavam a fome, a mortalidade infantil, o trabalho insalubre, os conflitos de terra, o analfabetismo, a discriminação. Era preciso que a Igreja ajudasse o povo oprimido a se libertar. Neste sentido, era fundamental que padres e bispos passassem a atuar também nesses temas, lançando mão de sua capilaridade e sua credibilidade para incidir na transformação das realidades locais.

Padre Angélico, na virada dos anos 1970, banhou-se – com fartura de águas – nesse debate. Em pouco tempo, ele viria a se aproximar de alguns dos mais proeminentes bispos e religiosos ditos progressistas, vinculados à Teologia da Libertação, como Dom Hélder Câmara (link externo), Dom Pedro Casaldáliga e o então frade Leonardo Boff (que deixaria a Igreja nos anos 1980). Mesmo assim, ele jamais se apresentaria como “adepto” da Teologia da Libertação. Quando perguntado, dizia-se adepto da teologia, simplesmente, porque, em suas palavras, não há teologia que não seja, por definição, libertadora. Da mesma forma, segundo ele, a opção pelo Evangelho é, necessariamente, uma opção preferencial pelos pobres e oprimidos: basta se orientar pelo testemunho de Jesus Cristo.

O Concílio Vaticano II ainda não havia terminado quando o presidente João Goulart foi derrubado por um golpe civil-militar, em 1964, inaugurando um longo período de 21 anos de ditadura, opressão e morte no Brasil. Padre Angélico não imaginava que aquela intervenção poderia durar tanto, muito menos que a passagem dos militares pelo poder deixaria o rastro de violência que deixou. Logo após a posse de Castello Branco, ele chegou a dizer, numa rádio local, que os militares não ficariam mais do que dois ou três meses no poder. A profecia não poderia ter sido mais equivocada.

O momento de ruptura com a democracia foi especialmente turbulento e provocou cizânias na Igreja. Desde a morte de Dom Luís, em 1962, a Arquidiocese de Ribeirão estava sob o comando de Dom Agnelo Rossi, um bispo conservador. Em 1963, Dom Agnelo fora um dos signatários de um documento encaminhado à CNBB reivindicando que os bispos se afastassem de “certas correntes ideológicas em voga nos meios do laicato”. Referia-se ao comunismo. Em 1964, participou da Marcha da Família com Deus pela Liberdade, um movimento cívico conservador deflagrado em março de 1964 que reuniu 500 mil pessoas nas ruas de São Paulo, com apoio do então governador Adhemar de Barros, para pedir a deposição do presidente João Goulart.

Realizada no dia de São José, padroeiro da família, e incensada pelos principais jornais do país, a marcha acabou contribuindo para preparar o ambiente para o golpe de 31 de março. Dom Agnelo sentiu-se aliviado. As Forças Armadas, ele acreditava, saberiam conter o ímpeto estatizante de Jango e a “ameaça comunista”. Dizia-se que o presidente da República defendia os interesses da União Soviética, país formado por quinze repúblicas socialistas e que, nos anos 1960, rivalizava com os Estados Unidos na economia, na ciência, na tecnologia, nos esportes, na corrida espacial e na política. Parte significativa da população brasileira acreditava no risco de os soviéticos financiarem uma revolução “vermelha” no Brasil, como já haviam feito em Cuba, cinco anos antes. Para impedi-los, a saída era confiar no Exército.

Dom Agnelo ficou pouco tempo em Ribeirão Preto, não mais do que dois anos, até ser transferido para a Arquidiocese de São Paulo pelo Papa Paulo VI, no final de 1964. Na mesma época, foi eleito presidente da CNBB, permanecendo no cargo até 1971. Tempos difíceis para os católicos que haviam confiado na ideia de Igreja do Povo, de opção preferencial pelos pobres, de libertação.

Enquanto esteve arcebispo de São Paulo, de 1964 a 1970, Dom Agnelo chegou a ser acusado de conivência com a tortura. Em 1969, quando frades dominicanos foram presos no Dops por colaborar com grupos de oposição à ditadura, o arcebispo chegou a visitá-los na prisão e pôde conferir as marcas da violência. Na saída, declarou à imprensa que não havia sinais de tortura, e que alguns estavam machucados simplesmente porque haviam caído da escada. Numa segunda ocasião, ouviu a mesma denúncia de Dom Paulo, então bispo-auxiliar na Zona Norte, e respondeu que não havia maus-tratos, porque gente de sua confiança, ligada ao governo do Estado, havia sido enfática ao afirmar que não existia tortura em São Paulo. Dom Paulo poderia dormir tranquilo.

Quem substituiu Dom Agnelo na Arquidiocese de Ribeirão Preto foi Dom Felício César da Cunha, arcebispo entre 1965 e 1972, período de recrudescimento do arbítrio.

Padre Angélico não demorou a assumir posição contrária à censura, às perseguições políticas, às prisões ilegais, à truculência da repressão, à tortura. Em vez de se mirar em bispos “adesistas” como lhe pareciam Dom Agnelo, Dom Vicente Scherer (o arcebispo de Porto Alegre que o havia ordenado diácono no seminário de Viamão) e Dom Eugênio Salles (então arcebispo do Rio de Janeiro), Padre Angélico entusiasmou-se com os textos de Dom Hélder Câmara, arcebispo de Recife e Olinda. O Jesus Cristo em que ele acreditava era mais parecido com o Jesus Cristo que povoava as histórias e as ações de Dom Hélder do que o lembrado pela maioria dos outros bispos.

Um dia, em meados de 1968, uma manifestação estudantil puxada por alunos da USP de Ribeirão foi duramente reprimida pela polícia, que cercou a Praça das Bandeiras e avançou com a cavalaria para cima dos jovens, encurralando-os em frente à Catedral.

Padre Angélico viu Dom Felício sair às ruas e se misturar com os manifestantes e não hesitou:

— Abri as portas da Catedral para que os estudantes pudessem entrar.

Em dezembro, quando foi editado o Ato Institucional número 5 – decreto presidencial que radicalizou o regime, oficializou a censura e instituiu medidas de exceção como a suspensão do habeas corpus, a cassação de parlamentares e o fechamento do Congresso Nacional por decisão monocrática do Poder Executivo –, Padre Angélico entendeu que era preciso aprofundar a luta em favor da liberdade e da democracia. Seu principal instrumento era o jornal que dirigia.

Se, em maio de 1964, quando Padre Angélico ainda era redator-chefe, uma manchete do Diário de Notícias havia saudado a “revolução”, e um editorial, assinado por ele, aplaudira a campanha Ouro para o Bem do Brasil, em janeiro de 1969 o tom era outro. “Novas cassações”, estampou a capa do dia 17, reproduzindo na última página do primeiro caderno a lista de atingidos pela medida de exceção.

Na coluna Meditação, que publicava todos os dias e assinava com o codinome “Andarilho nos caminhos dos homens em busca de Deus”, Dom Angélico não titubeava. Naquela edição, palavras vibrantes foram direcionadas aos proprietários de grandes extensões de terra improdutiva: “A terra é universal. É de todos”, escreveu.
Os latifundiários… Infecundos de amor. Ficam guardando terra, terra, muita terra, quando o trigo pede calor para germinar. (…) A terra virgem sente vergonha de ser pisada por donos tais, que se esqueceram de que Deus deu a terra para todos os homens e que a terra deve ser administrada em proveito dos homens, não em alimento do poder, da vaidade, de uns poucos infecundos.

Dias depois, em uma nova coluna, Padre Angélico clamava por união e coragem: “Estamos num tempo de guerras!”, escreveu, referindo-se mais ao Brasil do que ao Vietnã. “Aqueles que detêm o poder, em geral, servem-se de seus postos e não os fazem instrumentos de serviço ao bem comum. Aos poucos, porém, surge a reação. É preciso (que) nos capacitemos de que a força do bem é muito mais eficaz que a do mal. Na realidade, vencem os maus, quando vencem, porque os bons se acovardam. Não são suficientes, também, as boas ações isoladas. Gente boa nós a temos e muita. Acontece, porém, que, mui frequentemente, o mal se organiza, enquanto os bons estão no isolamento.” Sua retórica o obrigou a ir mais de uma vez à delegacia da cidade para prestar depoimento. Uma vez, foi convocado a comparecer ao Comando Militar do Sudeste, o II Exército, em São Paulo. O ano de 1969 estava apenas começando.

Padre subversivo fichado pela repressão

Não demorou para que o aparato repressivo desembarcasse em Ribeirão Preto e mostrasse sua face mais perversa. As justificativas oficiais eram as mesmas de 1964: vencer o terrorismo, coibir a ação dos subversivos, varrer a ameaça comunista. Em outubro daquele ano, agentes da Operação Bandeirante (Oban) – um centro extraoficial de inteligência e tortura montado em São Paulo por integrantes das três Forças Armadas, da Polícia Federal (PF) e do Departamento de Ordem Política e Social (Dops) – desbarataram uma organização clandestina local chamada Forças Armadas de Libertação Nacional (FALN). Entre outubro e novembro, foram indiciadas 35 pessoas por subversão. A investigação levou os agentes ao Lar Santana, um orfanato na Vila Tibério onde os membros da FALN se reuniam e imprimiam o jornal O Berro. Maurina Borges da Silveira, madre superiora da instituição, recebeu voz de prisão.

Sem participar da luta armada, Madre Maurina (link externo) havia apenas emprestado uma sala do orfanato para um grupo de jovens, que ela acreditava fazer movimento estudantil. Fichada como terrorista e transferida para o Dops de São Paulo, Maurina foi pendurada no pau-de-arara e torturada em repetidas sessões de espancamento e choques elétricos, sob o comando do delegado Sérgio Paranhos Fleury. As agressões verbais feriam mais. Ridicularizavam sua fé e sua virgindade, ameaçavam abusar sexualmente dela. No dia 12 de novembro, o arcebispo Dom Felício teve a iniciativa de excomungar Renato Ribeiro Soares e Miguel Lamano, dois delegados de Ribeirão Preto que participaram da ação contra a religiosa. Ao Diário de Notícias, Dom Felício declarou que todos aqueles que incorrerem nos mesmos erros praticados pelos dois delegados estariam excomungando a si mesmos. As torturas cessaram, mas a madre permaneceu presa. Foram cinco meses de prisão até que, em março de 1970, Maurina foi incluída na lista de presos políticos que deveriam ser embarcados num avião para o México em troca da libertação do cônsul japonês Nokuo Okuchi, sequestrado por militantes da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR).

Padre Angélico ajudou a denunciar a violência sofrida por Madre Maurina. Seu nome foi incluído entre os mais de trinta indiciados, embora a Justiça Militar tenha preferido não pedir sua prisão preventiva. Em 17 de novembro de 1969, Padre Angélico foi oficialmente incurso na Lei de Segurança Nacional e fichado no Dops pela primeira vez. Segundo apontamentos feitos pela polícia política, ele havia participado de passeatas estudantis e ajudava a patrocinar o jornal “subversivo” O Berro.

Anotações sobre Padre Angélico voltariam a ser feitas muitas vezes pelos espiões e delegados do Dops. Elas abrangem um período superior a dez anos. Num relatório produzido em 1973 pelo setor de Segurança do Ministério de Minas e Energia, foi anotado que “o jornal Diário de Notícias, de Ribeirão Preto, faz sistemática defesa de D. Elder Camara”, assim mesmo, sem a inicial “H” no prenome nem o acento no sobrenome, referindo-se ao arcebispo de Recife e Olinda, frequentemente tachado de “bispo vermelho” ou de “comunista” pelos jornais. Em outra ficha, datada de 1980, o nome de Dom Angélico surge no meio de uma lista de articulistas do jornal O São Paulo, editado pela Arquidiocese de São Paulo, com os seguintes comentários: “É o atual diretor. Seu relacionamento com D. Paulo Arns é excepcional. Agitador nos bairros periféricos de São Paulo, particularmente na Região Leste.”

Padre Angélico não teve sua prisão decretada em 1969, mas foi intimado a depor.

— Eu estava no meio de uma aula na faculdade e a professora cochichou no meu ouvido: “teu tio acabou de ser preso” — conta a sobrinha Sônia, filha de Antônio, o irmão mais velho de Dom Angélico, que fazia faculdade de Letras em Ribeirão Preto naquela época. — Esperei a aula acabar e fui buscar informações. Naquela época, os familiares ficávamos apreensivos. Achávamos que ele se expunha demais, se manifestava demais. Mas, para ele, agir era o que importava. Foi assim a vida toda.

Capa do prontuário do Dops de São Paulo dedicado a Dom Angélico, hoje sob a guarda do Arquivo do Estado de São Paulo.
Boletim registrado pela Delegacia de Polícia da Ribeirão Preto em 1969. “Iniciado o processo em 18/10/69 por infração prevista no artigo L.S.N.”, diz o formulário, referindo-se à Lei de Segurança Nacional.
Padre Angélico tinha 36 anos e era redator-chefe do jornal Diário de Notícias quando foi fichado pela primeira vez no Dops de São Paulo.
“Incurso na Lei de Segurança Nacional”.
“Agitador nos bairros periféricos de São Paulo, particularmente na Região Leste”, diz anotação do Dops de 1980, quando Dom Angélico, já bispo-auxiliar, dirigia o jornal da Arquidiocese O São Paulo.
“Faz sistemática defesa de D. Elder Camara”, os policiais acusaram, em 1973, tropeçando na grafia do nome do arcebispo de Recife e Olinda, Dom Helder Câmara. É falsa a informação de que Dom Angélico teria participado da organização revolucionária FALN.

Dom Bernardo Miele substituiu Dom Felício à frente da Arquidiocese de Ribeirão Preto em 1972. Ao chegar, o novo arcebispo decidiu destituir Padre Angélico da função de cura da Catedral e atribuir a ele a coordenação pastoral. Foi como unir a fome à vontade de comer. Inquieto e solidário, sentindo a urgência de “ir aonde o povo está” – como os artistas na canção de Milton Nascimento e Fernando Brant –, Padre Angélico decidiu se instalar de vez na Vila Carvalho, onde a comunidade havia construído a capela Deus é Amor e onde ele costumava celebrar missa, orientar casais e mobilizar as pessoas.

Angélico foi morar num cômodo recém-construído atrás da capela. Desta vez, chegou de Fusquinha. Era um Fusca “pé de boi”, uma versão “completamente pelada” do modelo da Volks, que ele comprara de segunda mão. Não tinha frisos, nem calotas, nem tapetes, aquecedor, acendedor de cigarros, iluminação ou retrovisores. Nem marcador de combustível: enfiava-se uma vareta no tanque para conferir o nível da gasolina.

Casais que faziam parte das Equipes de Nossa Senhora dirigidas por ele tentaram demovê-lo da ideia de se mudar para a favela. A Vila Carvalho era um lugar perigoso, um reduto de assaltantes e traficantes, diziam. Irmãos e sobrinhos de Angélico achavam arriscado ele ir até aquele lugar aos domingos ou à noite, imagina viver ali. Mas foi a opção do padre: opção preferencial pelos pobres vivida na prática, no dia a dia.

As duas religiosas da congregação Missionárias de Jesus Crucificado que o ajudavam, Maria do Carmo e Ivone da Silva, esforçavam-se para garantir algum conforto ao padre, mas bastava um descuido delas para que ele renunciasse a tudo que lhe parecia supérfluo. Quando notaram que a casa onde ele vivia não tinha praticamente nada, amigos buscaram apoio dos donos de uma rede de lojas e conseguiram adquirir um fogão, uma geladeira e uma televisão para o Padre Angélico. Num inverno especialmente gelado na Alta Mogiana, outros amigos lhe deram um casaco de presente. Ele agradeceu, um agradecimento sincero e efusivo, e vestiu o presente. Duas semanas depois, os mesmos amigos se depararam com o casaco no corpo de um homem da comunidade chamado Duílio, mesmo nome do pai de Angélico. Alcoólatra e sem ter onde morar, Duílio dividia com Padre Angélico os parcos metros quadrados do cômodo atrás da capela.

— Cadê o paletó? — perguntaram — Emprestei ao Duílio.

Aconteceu a mesma coisa com os eletrodomésticos. O padre havia mandado tudo para a casa da vizinha, uma mulher muito pobre, mãe de cinco filhos. Nos primeiros dias, ela tinha pedido a ele que guardasse o leite das crianças na geladeira. Uma semana depois, a molecada passou a vir todo dia ver televisão em sua casa. “Melhor mandar tudo para a casa dela”, Padre Angélico concluiu. “Lá, serão mais úteis. Aqui, não me farão falta.”

Um dia, o padre ficou sabendo que 120 casas construídas pela Caixa Econômica para serem destinadas a um programa habitacional continuavam vazias após muitos anos. Ficavam no Parque Ribeirão Preto, um loteamento na fronteira sudoeste da cidade. Angélico acelerou o Fusquinha e foi fazer uma vistoria. Deu de cara com um cavalo bisbilhotando o interior de uma das casas. De fato, estava tudo abandonado.

— Ocupa, ocupa tudo! – Padre Angélico decretou.
Em poucas semanas, 120 famílias da Vila Carvalho mudaram-se para as 120 casas de alvenaria. A ocupação ficou conhecida como Vila Cento e Vinte. Mais tarde, ganhou outro apelido: Vila Fraternidade. Em outra ação semelhante, Padre Angélico determinou que 24 casas de madeira fossem construídas a toque de caixa numa gleba da qual não se sabia o dono, mas que era improdutiva. Isso porque a Prefeitura mandara despejar, sem misericórdia nem planejamento, uma ocupação com igual número de famílias que havia no terreno onde seria construído o Parque Permanente de Exposições, destinado a abrigar todos os anos a Feira Agropecuária da Alta Mogiana (Feapam). Em uma semana, as casas estavam todas prontas. O bairro ficaria conhecido como Vila Unida.

Antes de encerrar sua inspiradora passagem por Ribeirão Preto, Padre Angélico ainda tratou de inaugurar, em 1974, o Bom Samaritano, uma unidade de saúde com atendimento gratuito voltada para os moradores da Vila Carvalho. Numa época anterior à Constituição Federal de 1988 – e, portanto, anterior ao SUS –, a luta por postos de saúde e unidades de pronto atendimento caminhava de mãos dadas com a luta por moradia, saneamento, salário digno, carteira assinada e outras bandeiras.

Tudo isso começou a chamar a atenção de Dom Paulo Evaristo Arns (link externo), arcebispo de São Paulo desde 1970 e cardeal desde 1973. Os dois, Dom Paulo e Padre Angélico, cruzavam-se pelo menos uma vez por ano nos encontros da Comissão Episcopal Regional Sul-1 da CNBB, que reunia todos os bispos do Estado de São Paulo. Realizados tradicionalmente no Mosteiro de Itaici, em Indaiatuba (SP), esses encontros costumavam contar com a presença de pelo menos um representante dos padres, escolhido por seus pares para acompanhar parte dos trabalhos e transmitir a eles as decisões tomadas pelos bispos. Angélico era assíduo frequentador desses encontros. “Ele representava muitas vezes o clero do Estado de São Paulo e se distinguia pela participação viva, tanto junto a seus colegas padres quanto também pela franqueza em transmitir suas opiniões aos bispos, que se reuniam à parte”, escreveu o cardeal em capítulo publicado no livro Dom Angélico Sândalo Bernardino: bispo profeta dos pobres e da justiça, de 2012.

Em 1972, a comissão se reuniu em Brodowski, cidade vizinha de Ribeirão Preto. Desse encontro nasceu o primeiro documento da Igreja de São Paulo contra a tortura, intitulado Testemunho da Paz. Padre Angélico estava lá. Na ocasião, Dom Paulo foi apresentado ao Diário de Notícias, dirigido por Padre Angélico, e passou a acompanhar também seu trabalho como jornalista e editor, encontrando nele qualidades como desprendimento, humildade, garra e, sobretudo, a firme aliança com o povo da periferia.

Naquele mesmo ano, em sua primeira viagem a Roma, Dom Paulo ouvira um conselho do Papa Paulo VI. O sumo pontífice recomendara a ele a nomeação de um número maior de bispos-auxiliares. A Arquidiocese de São Paulo era grande demais, com 10 milhões de fiéis, e Dom Paulo tinha apenas dois auxiliares: José Thurler, nomeado em 1966 por Agnelo Rossi, e Benedito de Ulhôa Vieira, nomeado por ele nos últimos dias de 1971. “Quando o Papa Paulo VI me aconselhou a eleger pelo menos um bispo-auxiliar para cada milhão de fiéis na Arquidiocese de São Paulo, o nome do padre Angélico Sândalo Bernardino me veio imediatamente à lembrança e ao coração”, registrou.

Assim que lhe foi autorizada a nomeação de mais quatro bispos-auxiliares, Dom Paulo não titubeou. Em 30 de outubro de 1974, redigiu de próprio punho uma carta endereçada à Arquidiocese de Ribeirão Preto:

Prezado Cônego Angélico,

Paz e Bem!

Telefonou-me hoje a nunciatura dizendo que o Papa lhe vai pedir um sacrifício. Espero que você diga o “sim” generoso, como o fez nossa Mãe. Para isso estamos rezando e torcendo, há mais de um ano em São Paulo.

Venho pedir-lhe, desde já, uma colaboração: preciso de uns dados e uma boa fotografia. Queira indicar-nos os trabalhos que realizou e algo mais que possa estreitar laços entre as pessoas dispostas a lutar conosco em São Paulo.

A equipe – de início quatro novos – é muito boa, amiga e disposta. Além de sentir-se em casa, tenho a certeza de que há de sentir-se também sempre mais útil à Igreja e ao mundo.

Com o abraço e a amizade vão as orações e os votos de seu irmão em Cristo.

Paulo Evaristo Cardeal Arns.

No dia 9 de novembro, foi a vez de Padre Angélico escrever uma carta à Nunciatura Apostólica do Brasil:

Meu caro irmão Monsenhor Paulo Giglio,

Deus é AMOR!

Tenho em mãos sua carta de 30/10/74, dando-me conta de que “o Santo Padre designou-me Bispo Titular de Tambee e Auxiliar do sr. Cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, Arcebispo de São Paulo.”

Ao mesmo tempo, recebi carta do Sr. Cardeal, falando-me do assunto.

Rumei para São Paulo e troquei amplas ideias com D. Paulo Evaristo.

Agora, com tranquilidade, confiado na força de Deus que sustenta minha fraqueza, posso lhe dar meu assentimento ao serviço que o Santo Padre me indica. Dizendo “sim”, creio estar cumprindo a vontade de Deus que deve ser feita. Conto, também, meu irmão Monsenhor Paulo, com suas orações.

Seja sobre nós a graça do Senhor nosso Deus!

Fraterno abraço do

P. Angélico Sândalo Bernardino.

Padre Angélico, prestes a completar 42 anos, arrumou a mala e se mudou de cidade mais uma vez, agora rumo à capital e à efervescente Igreja de Dom Paulo.