1. Servo
Inútil
— Um minuto, já vou abrir!
Uma voz feminina ressoa no porteiro eletrônico. Ouve-se o estalido da fechadura elétrica e uma fresta se abre no portão de alumínio.
— Pode subir. O Dom já vai atender.
Catorze degraus acima da estreita calçada, um senhor baixo e magro, de cabelos brancos, termina de ajustar uma máscara cirúrgica sobre a boca e o nariz.
— Bem-vindo, meu irmão!
Sua voz é efusiva, hospitaleira. O olhar revela entusiasmo. Dom Angélico veste uma camiseta branca, puída, estampada com o retrato de Dom Óscar Romero. Arcebispo salvadorenho, defensor dos direitos humanos e entusiasta da não-violência, Romero tinha 62 anos quando foi assassinado por um atirador de elite do Exército enquanto celebrava missa, em 1980. Canonizado pelo Papa Francisco em 2018, tornou-se o primeiro santo da América Central.
Os gestos de Dom Angélico demonstram preocupação com o protocolo sanitário em tempos de Covid-19. As mãos indicam uma cadeira. Há quatro delas ao redor de uma mesa redonda no primeiro cômodo da casa, uma mistura de varanda com área de serviço. Ali, é possível observar o distanciamento de um metro e meio. Num dos cantos, há um pequeno tanque e uma máquina de lavar. Próximo ao peitoril, roupas no varal e um toldo-cortina. Não houvesse a barreira de plástico, seria possível enxergar, do outro lado da rua, uma quadra de futebol, uma creche da Prefeitura e o ponto inicial da linha de ônibus 971A Jardim Primavera-Shopping D.
— Uma barulheira — Dom Angélico suspira, obrigado a aumentar a voz sempre que um coletivo manobra ou aguarda com o motor ligado. O futebol incomoda menos. — É a diversão da garotada, com já tão poucas opções de lazer. — Você sabe que eu fui goleiro?
Conversar com Dom Angélico em meados de 2021 é alternar análise política da atualidade com reminiscências do passado. Um olho na Igreja; outro nas reivindicações do povo. As peladas que disputou na infância, em Saltinho, então distrito de Piracicaba (SP), onde nasceu, ou no seminário maior, em Viamão (RS), estão entre as lembranças que fazem brotar sorrisos no rosto do bispo – e, por vezes, umedecer os olhos.
— Eu era um gato no gol.
Dom Angélico refere-se à destreza em saltar e agarrar a bola.
Sua posição, em campo ou fora dele, sempre foi a defesa.
Defesa dos vulneráveis, dos trabalhadores, dos movimentos sociais, da opção preferencial pelos pobres, da liberdade de expressão. Conhecido por sua atuação como bispo-auxiliar de Dom Paulo Evaristo Arns (link externo) – o mais subversivo deles, lotado na região episcopal de São Miguel Paulista, no fundão da Zona Leste, entre 1975 e 1989, e na Vila Brasilândia, na Zona Norte, de 1989 a 2000 –, Dom Angélico também se saiu bem no ataque e no meio de campo, em todos os campeonatos que disputou: como padre em Ribeirão Preto (SP), coordenador da pastoral do mundo do trabalho em São Paulo, diretor de diversos jornais, entre eles O São Paulo, da Arquidiocese de Dom Paulo, e, finalmente, bispo diocesano em Blumenau (SC), sem jamais abdicar da coragem, da fala incisiva, do afeto incondicional e do compromisso inadiável com a evangelização.
Aos 88 anos, Dom Angélico divide residência com a Irmã Carmem Julieta Rodrigues, a dona da voz no porteiro eletrônico. Religiosa da Congregação das Discípulas de Jesus Eucarístico, Irmã Carmem é sua fiel escudeira desde os anos 1970, quando exerceu trabalho missionário no Jardim das Oliveiras, na região episcopal de São Miguel Paulista. Da Zona Leste, Irmã Carmem se transferiu para a Zona Norte com Dom Angélico, que a convidou para organizar a pastoral da criança na região episcopal da Vila Brasilândia. Em seguida, nomeado primeiro bispo diocesano de Blumenau, em Santa Catarina, em 2000, Dom Angélico arrastou um padre, quatro seminaristas e três irmãs junto com ele – entre elas a Irmã Carmem Julieta, ora promovida a secretária da Cúria e secretária particular do bispo.
O sobrado onde moram fica a 100 metros da Avenida Inajar de Souza, uma das mais movimentadas da Zona Norte, no Jardim Primavera, divisa dos distritos de Freguesia do Ó e Casa Verde. Geograficamente, está sob a circunscrição da paróquia de Santa Luzia, na região episcopal da Vila Brasilândia. Dom Angélico vive naquela casa desde que voltou de Blumenau, onde serviu por quase uma década, de 2000 a 2009. Ao completar 75 anos, em 2008, Dom Angélico cumpriu à risca o que estabelece o Código de Direito Canônico: colocou o cargo à disposição. Foi Irmã Carmem quem levou ao Correio a carta com o pedido de renúncia, endereçada ao Vaticano, assim que ele fez aniversário. Seu substituto, Dom José Negri, foi anunciado um ano e pouco depois. Chegou num dia e Dom Angélico partiu no dia seguinte. “Para não interferir”, segundo ele. Dom Angélico voltou para São Paulo com o adjetivo emérito na bagagem.
Coisa esquisita é bispo emérito. Em latim, significa “bispo merecedor”, como um reconhecimento, um título honorífico. Na prática, é o mesmo que “aposentado”: todo bispo vira emérito depois de entregar o cargo. O bispo merecedor, no entanto, não merece tudo. Ele perde, por exemplo, o direito a voto no colégio dos bispos, podendo apenas se manifestar oralmente nas conferências e decisões. Se deixar, um bispo decorativo.
— Virei um servo inútil.
Ao deixar Blumenau, Dom Angélico poderia ter feito como o apóstolo Paulo em carta a Timóteo: completado a carreira e guardado a fé. Mas que nada. Retomou o combate no mesmo ponto em que havia parado quando foi transferido, em 2000, da Vila Brasilândia para a “bela e Santa Catarina”, como gosta de dizer. Voltou para a região Brasilândia, envolveu-se mais uma vez nas lutas do povo e passou a assinar uma coluna no jornal O São Paulo, que ele havia dirigido nos anos 1980, cada vez mais empenhado em colocar o dedo na ferida. Afora isso, assumiu integralmente a função de peregrino:
— Agora que não sou mais bispo de Blumenau, vou aonde me chamam – diz.
No primeiro piso, onde estão a sala e a cozinha, quem manda é Irmã Carmem. Aos fundos, uma escadinha em caracol leva ao “apartamento” dele, no andar de cima: um escritório com uma capela, um quarto modesto com uma cama de solteiro, um banheiro. Ali, prateleiras e armários abrigam vasta bibliografia cristã, incluindo encíclicas e bulas papais, com especial carinho por aqueles que tratam da doutrina social da Igreja e da opção preferencial pelos pobres, princípio orientador da ação pastoral de Dom Angélico.
Há, ainda, álbuns de fotos, fichários com recortes de jornais, teses sobre jornalismo popular e democracia participativa, pastas com folhetos e cartazes anunciando celebrações eucarísticas – algumas o homenagearam em efemérides como os 50 anos de sacerdócio e o jubileu de prata da ordenação episcopal – e, relíquia maior, parte da correspondência trocada ao longo dos anos com Dom Paulo Evaristo Arns, seu chefe na Igreja de São Paulo por vinte e cinco anos.
Numa das mesas do escritório, ensanduichadas entre um tampo de madeira e um tampo de vidro, fotografias relembram encontros memoráveis: Nelas, Dom Angélico cumprimenta Desmond Tutu, arcebispo da igreja anglicana conhecido por lutar contra o Apartheid na África do Sul, e Dalai Lama Tenzin Gyatso, líder máximo do budismo tibetano, ambos agraciados com o Prêmio Nobel da Paz, em 1984 e 1989, e o educador brasileiro Paulo Freire. Nas paredes e nos móveis, outros registros memoráveis. Dom Angélico ao lado de Dom Paulo, recebendo um abraço do Papa Francisco, um retrato de seus pais, a certidão de batismo, uma foto de Sebastião Salgado… No alto, bem em frente à entrada do escritório, uma placa com o lema de Dom Angélico: “Deus é amor”.
Foto: Douglas Mansur.
Desde o início da pandemia, em março de 2020, praticamente ninguém visita aquele espaço, ora convertido em claustro involuntário. Se dependesse somente dele, Dom Angélico não receberia ninguém, algo inédito para quem dedicou a vida a promover encontros, percorrer vilas, abraçar pessoas. Hoje, a prudência faria dele um eremita – por autocuidado e, sobretudo, para dar o exemplo. Um pastor não se descuida de suas ovelhas. Como o movimento de fiéis não cessa, tampouco o telefone e a campainha, Dom Angélico abre uma exceção aqui e outra ali e se dispõe a receber uns e outros. Algumas demandas são urgentes, ele sabe. Gente com fome ou ameaçada de despejo, pais desempregados ou enfermos, viúvas e órfãos da pandemia. Um biógrafo, um cinegrafista. Duplamente vacinado, o bispo impõe limites e orienta para o uso da máscara e do álcool gel, inclusive na praça em frente de casa, nos rápidos passeios matinais que faz, com a ajuda de uma bengala, por recomendação médica, sem aglomerar com ninguém.
— Quinhentos e tantos mil mortos, mais de mil por dia — ele enumera, como quem desabafa. — Olha, não é brincadeira, meu irmão!
Por causa do vírus, Dom Angélico se desculpa por não oferecer sequer um café.
— Quando as coisas melhorarem, a gente toma um cafezão — sugere, superlativo. — Mas você traz o pó — e abre o sorriso maroto, cultivado em mais de sessenta anos de ação missionária, cinquenta deles nas periferias.
Dom Angélico conta que celebra missa todos os dias em casa. Mas, dadas as circunstâncias, a audiência se limita a Irmã Carmem. A missa das 11h, que ele conduzia aos domingos na Paróquia São Judas Tadeu, na Vila Miriam, também na Zona Norte, foi suspensa em 2020. Pouco à vontade com dispositivos móveis e videoconferências, Dom Angélico preferiu abdicar das missas. Pesou na decisão a expectativa de que o distanciamento durasse pouco, adiando por meses uma alforria que nunca vinha. Já Antônio Leite Barbosa Júnior, o Padre Toninho, pároco da São Judas, optou por transmitir a liturgia semanal e, em meados de 2021, quando boa parte da comunidade havia tomado a segunda dose da vacina, voltou a receber fiéis na igreja, agora com a nave salpicada de fitas amarelas a fim de restringir o acesso a parte dos bancos e evitar aglomeração.
Dom Angélico diz que está ansioso para voltar à igreja e retomar os cânticos, as homilias, o ofertório, a eucaristia, após um ano e meio de reclusão.
— Quem não reza vira bicho — alerta, repetindo um bordão que o acompanha desde os anos 1970. — E quem não trabalha vira bicho-preguiça.
Antes da pandemia, a rotina de Dom Angélico era tão intensa que ninguém ousaria dizer que ele havia entrado na casa dos oitenta. A missa dominical era apenas um de seus muitos compromissos. Toda semana, ia aos estúdios da Rede Vida, no Pacaembu, para gravar os programas “Gotas de Esperança” e “Com Muito Amor”, ambos com mensagens de um a quatro minutos. Os dois saíram do ar em maio de 2020. Pouco antes, em março, Dom Angélico cancelou as viagens que fazia com frequência, apesar da idade avançada, para pregar em encontros e retiros em todo o Brasil. Desde os anos 2000, quando coordenou, por oito anos, o setor de vocações e ministérios da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, uma comissão voltada a atuar em favor dos padres dentro da estrutura da CNBB, os convites não param de chegar, para alegria do bispo andarilho. Isso sem contar os convites recorrentes para dar entrevistas, escrever prefácios, celebrar batizados, participar de cultos ecumênicos.
— Fiquei mais ocupado depois de emérito do que na diocese — compara.
Não foi apenas a pandemia que o fez reduzir o ritmo em 2020. O corpo exigiu. Em março daquele ano, Dom Angélico passou por uma cirurgia no coração.
— Ele já tinha feito uma angioplastia em meados da década de 1990 — conta Padre Toninho, que foi ordenado por Angélico e o acompanha de perto há trinta anos. — Em 2020, precisou ir de novo para o centro cirúrgico e desobstruir algumas artérias.
O padre conta que Dom Angélico teve um bloqueio, um branco, que o impediu de concluir uma oração. As palavras não vinham. Os dois entraram no carro e foram para o Hospital Santa Catarina, na Avenida Paulista. Um neurologista o examinou, chegou a diagnosticar um espasmo, que logo se desfez. O ecocardiograma dissipou as dúvidas. Segundo Padre Toninho, havia artérias com 50%, 60% e até 70% de obstrução. Dom Angélico foi submetido a um cateterismo e ganhou cinco stents, pequeníssimos tubos flexíveis introduzidos no interior das artérias a fim de ampliar o diâmetro desses canais e facilitar o fluxo sanguíneo.
Poucos meses depois, Dom Angélico diagnosticou uma sinusite que nunca mais o largou. Segundo o bispo, a garganta arde, o nariz dói e a sensação de falta de ar sobe pelas faces até as têmporas. O nervo ciático também deu de atacar. Ele diz que pega na lombar e desce pelo bumbum até a parte de trás das pernas.
— Estou com dores passageiras: passam de um lado para o outro.
Dom Angélico reproduz o chiste que ouviu recentemente de um amigo de Ribeirão Preto, hoje com 92 anos, com quem ainda conversa com frequência, por telefone.
— Perto de outros sofrimentos, não é nada.
Tudo isso contribuiu para reduzir aos poucos a mobilidade de Dom Angélico, mas foi o Coronavírus que conseguiu o improvável: prender o andarilho em casa. Se antes ele e Irmã Carmem saíam todos os dias para almoçar em algum restaurante por quilo na vizinhança, agora as quentinhas chegam diariamente da padaria mais próxima. Sair, só por motivo de saúde.
Dom Angélico enfrenta há doze anos uma queda de braço que o tira do sério com relativa frequência: a visão começou a dar sinais de desgaste. Os primeiros sintomas apareceram em seu último ano em Blumenau. Chegou a fazer uma cirurgia de catarata em Curitiba, e o problema persistiu. Já em São Paulo, peregrinou por diversos médicos, sempre na companhia do Padre Toninho, até receber o diagnóstico correto e iniciar o tratamento na clínica do Dr. Paulo de Arruda Mello Filho, na Avenida Pompéia.
Seu caso é de degenerescência macular, uma patologia relacionada à idade, que ataca as retinas e provoca perda da acuidade visual. A visão vai ficando turva, embaçada.
— Com este olho, eu já não leio — Dom Angélico indica o olho esquerdo. — Neste outro, de quinze em quinze dias, eu tomo uma injeção. Agora está espaçando, mas pelo menos uma vez por mês eu preciso fazer.
O medicamento utilizado se chama Eylea, nome comercial do aflibercept produzido pela Bayer. As aplicações, intraoculares, não poderão curá-lo, mas evitam a evolução da doença. “Até agora já foram mais de duzentas aplicações”, estima Padre Toninho. “A visão do Dom não melhorou, mas também não piorou”.
A hipótese de deixar de enxergar aterroriza Dom Angélico. Sua paixão é a leitura, sempre foi. A Bíblia, documentos pontifícios, textos sobre ação pastoral. Dom Angélico lê de tudo, só não lê no celular. Não gosta, não enxerga. Não usa nem o WhatsApp. Prefere o telefone fixo. Faz várias ligações por dia.
Em junho de 2021, um acidente durante a aplicação do remédio fez com que ele voltasse para casa sem enxergar. O remédio transbordou para atrás da córnea. Por uma semana, precisou ir todos os dias à clínica para um tratamento com laser a fim de mover o líquido para o lugar certo. Ficou numa aflição danada, mal-humorado, incapaz de identificar as pessoas. Um desconforto tremendo.
— Agora, se você me perguntar como é que eu estou, direi que sigo forte, firme e feliz nas mãos de Deus, que é pai — diz. — Porque, com 88 anos e seis meses, meu irmão, eu só tenho a agradecer.
O discurso da resignação não dura dois minutos e é logo substituído pelo vigor da palavra, o rigor intelectual e a ousadia de sempre. Dom Angélico não aquieta nem por decreto. Reclama do preço dos combustíveis e dos alimentos, denuncia a escalada da fome no Brasil, elogia o trabalho de Padre Júlio Lancellotti junto à população em situação de rua, diz que os militares deveriam voltar para os quartéis e chama atenção para um protesto recente, ocorrido em São Paulo, por iniciativa de um coletivo periférico: a tentativa de tocar fogo numa estátua que homenageia o bandeirante Borba Gato.
— Derruba, mesmo — ele sugere.
Dom Angélico reitera seu repúdio a todos os símbolos que homenageiam bandeirantes, exploradores, caçadores de índios, escravagistas e genocidas em geral.
— Há uma reação legítima, que deve abarcar toda a sociedade, inclusive a Igreja. Nós não apoiamos a escravidão, mas também não a combatemos — Dom Angélico reflete, ciente de que muitos bispos e frades tiveram escravos em seus palácios e mosteiros.
— O poder é uma praga quando não exercido para o bem comum.
A associação com os desmandos da ditadura militar é imediata.
— Essas estradas que homenageiam personagens como Raposo Tavares e Anhanguera deveriam mudar de nome. A Castelo Branco também — opina, referindo-se a três rodovias paulistas, batizadas em referência a dois bandeirantes e ao primeiro presidente da República empossado após o golpe de 1964 (link externo).
Dom Angélico vai além. Reivindica o papel pedagógico dos monumentos públicos e da sinalização urbana e parabeniza as iniciativas que buscam banir violadores de direitos humanos dos nomes das ruas e de outros logradouros. Em 2016, a Prefeitura de São Paulo sancionou a transformação do Elevado Costa e Silva em Elevado João Goulart. Saiu o general responsável por editar o AI-5, uma guinada autoritária dentro de um regime de exceção, e entrou o presidente civil deposto pelo golpe. Dom Angélico gostou da troca e defende que ela seja a primeira de muitas.
— Sou a favor de trocar o nome da Castelo Branco para Alexandre Vannucchi Leme (link externo) — propõe, referindo-se ao estudante torturado até a morte no DOI-Codi, em 1973. — Se não quiserem trocar tudo, que troquem pelo menos no trecho entre São Paulo e Sorocaba, que era a terra natal dele.
O bispo emérito sabe que são muitos os obstáculos à realização dessa ideia. Mas que é preciso perseverar. Dom Angélico perseverou a vida toda e tem consciência de que a maioria de suas lutas continua exigindo trabalho e indignação. As novas gerações estão aí para pegar o bastão e carregar o piano. O que não pode é esmorecer.
Em junho de 2021, Dom Angélico foi convidado a dialogar por videoconferência com diversas lideranças de movimentos sociais da Zona Leste, de ontem e hoje, num encontro promovido pelo Núcleo de Ação Cidade Tiradentes (NA_CT) em parceria com o Instituto Vladimir Herzog, no âmbito do projeto Territórios da Memória (link externo). Estavam lá o veterano Expedito Marinho, do movimento de moradia do Jardim das Oliveiras, a jovem Bia Sankofa, do movimento de cultura de Cidade Tiradentes, a Patrícia Kelly, da pastoral da juventude de São Miguel Paulista, o Edilson Mineiro, da União Nacional por Moradia Popular, a Marilza Santos, agente comunitária de saúde na Vila Yolanda, e tantos outros.
Expedito lembrou a carência de tudo no fundão do Itaim Paulista no início dos anos 1980. “Dom Angélico apoiou os primeiros mutirões, aprimorou nossas reuniões, deu voz à comunidade, se juntou às nossas lutas, até que as conquistas começaram a aparecer: as creches do Jardim Meliunas, do Parque Santa Amélia, do Jardim das Oliveiras, a escola estadual João Prado Margarido”, listou. “Dom Angélico dizia que a propriedade que não cumpre sua função social é uma propriedade roubada, não é legítima”, contou Edilson, que o conheceu nos anos 1990. Marilza destacou que, junto à Vila Yolanda, na Cidade Tiradentes, há uma Unidade Básica de Saúde batizada em homenagem a Dom Angélico. É onde ela trabalha. O local é resultado de uma ocupação feita nos anos 1980 numa gleba que foi adquirida pela Igreja por iniciativa do então bispo-auxiliar de São Miguel. “Antes, nossa comunidade precisava caminhar por mais de meia hora para chegar a um posto de saúde.”
Ainda em distanciamento social, mas jamais inútil, Dom Angélico não cessa de militar em favor dos movimentos sociais. Mesmo que seja assim, por videoconferência.
— Como é importante a gente mi-li-tar.
Assinala cada sílaba de uma palavra que, em tempos recentes, adquiriu valor negativo na semântica apressada da opinião pública, embalada na mesmo onda que criminalizou partidos políticos e movimentos sociais.
— Militar é defender uma causa justa, é buscar melhorar a sociedade.
Dom Angélico sempre gostou de militar (o verbo, mais do que o substantivo). Logo que se instalou na Zona Leste, em 1975, o bispo-auxiliar, então com 42 anos, tratou de incutir em cada sacerdote, em cada comunidade eclesial de base, o mesmo compromisso com a ação pastoral. “O princípio que norteava todo o trabalho de Dom Angélico era a união indissociável entre realidade social e evangelho”, diz Padre Paulo Bezerra, pároco de Nossa Senhora do Carmo, em Itaquera, que foi ordenado por ele em 1980. “Ele repetia sempre que vida e liturgia andam juntas, e o sacerdote deve cuidar das duas coisas. Não adianta cuidar apenas da vida espiritual dos fiéis e fechar os olhos para a necessidade que eles têm de água, luz, asfalto, creche, trabalho ou moradia”.
Hoje, nos bastidores do clero, Dom Angélico milita em favor dos demais “servos inúteis”. Logo após deixar a diocese de Blumenau, foi eleito presidente da Subcomissão para os Bispos Eméritos da CNBB e assumiu a missão de promover encontros nacionais, superar impasses e reivindicar espaços de reconhecimento e atuação para os “velhinhos”. É evidente a insatisfação de muitos em relação à aposentadoria dos bispos aos 75 anos. A perda do prestígio, combinada à ausência de uma estrutura capaz de prover aos eméritos os meios para que possam colaborar com a Igreja, numa fase em que a maioria ainda está produtiva, faz com que muitos deles se sintam esquecidos e subaproveitados.
O professor Fernando Altemeyer Jr., que foi padre na Zona Leste nos anos 1980 e 1990 e, mais tarde, casou-se e trocou o sacerdócio por outra militância, a universitária, diz que a Igreja Católica tinha, em meados de 2021, 304 bispos ativos e 162 bispos eméritos no Brasil. A proporção, de um para dois, tem diminuído com o aumento da expectativa de vida. E restringe demasiadamente a vida útil de um bispo. Como a maioria assume a função após os 50 anos, sobram 25 anos para a dedicação ao cargo. Chefe do departamento de Ciências Sociais da PUC-SP, Altemeyer explica que a figura do bispo emérito foi introduzida em 1965, durante o Concílio Vaticano II, no pontificado do Papa Paulo VI. Antes, o episcopado era vitalício, como ocorre com os papas. A instituição da aposentadoria compulsória aos 75 anos, por sua vez, foi determinada em 1983, pelo Papa João Paulo II, que a introduziu no Código de Direito Canônico. Desde então, não apenas a expectativa de vida aumentou, como a maioria chega lúcida e produtiva aos 80 e poucos. “Muitos dos bispos eméritos estão no auge de sua capacidade intelectual”, diz o professor.
A aposentadoria também representa a perda de direito a voto no colégio dos bispos e o afastamento das funções relacionadas à CNBB. Nas assembleias, os decanos podem opinar, mantêm o chamado “direito a voz”, mas não podem decidir. Dom Angélico defende que os “velhinhos” permaneçam com as mesmas atribuições nas Conferências Episcopais após deixarem a administração das dioceses. Ou, pelo menos, que essa idade seja revista. “Com 162 votos num universo de 466, os bispos eméritos poderiam mudar o tabuleiro político”, diz Altemeyer.
Nos últimos dez anos, Dom Angélico viveu parte significativa do seu tempo entre voos e terminais de embarque. “Ele virou o bispo emérito dos retiros, pregava no Brasil inteiro”, diz Padre Júlio Lancellotti, coordenador da Pastoral do Povo da Rua. Um desses retiros, mais do que todos os outros, ficou na memória de Lancellotti. Estavam no Mosteiro de Itaici, tradicional local de retiros e conferências da Igreja paulista, em Indaiatuba (SP), com três convidados especiais: Dom Angélico, bispo emérito de Blumenau, Dom Luciano Mendes de Almeida, bispo emérito de Mariana (MG), e Dom Pedro Casaldáliga, bispo emérito de São Félix do Araguaia (MT). “Eram nossas melhores referências, representavam tudo aquilo em que nós mais acreditamos na missão da Igreja, e os três nos surpreenderam ao declarar que sua confissão seria pública”, completa.
— Graças a Deus, minha vida tem sido muito intensa.
Dom Angélico esboça um rápido balanço.
— Aquele menino de Saltinho, filho de lavradores, se tornou um velho de 88 anos, feliz e realizado. Só posso agradecer a Deus.
Dom Angélico diz que tem o hábito de encerrar o expediente às dez da noite. Enquanto outros bispos eméritos reclamam da insônia, do barulho, da falta de posição na cama, Angélico dorme profundamente. O que lhe tira o sono para valer, ele diz, costuma atacar durante o dia: o descontrole da pandemia, as ameaças às instituições democráticas, a falta de incentivo à Cultura, o desmatamento, a perseguição aos indígenas, a profusão de desabrigados no centro da cidade, a política econômica que favorece os poderosos.
— Papa Francisco diz que nós precisamos de uma economia solidária — lembra. — É disso que nós precisamos. E não de acúmulo da riqueza nas mãos de poucos, não dos marajás da República que recebem mensalmente um salário que é um escândalo.
Irmã Carmem se aproxima sorrindo, como quem vem resgatar o amigo em razão de outro compromisso. Dom Angélico estende uma bomboniere e oferece sequilhos. Depois se lembra da máscara, do protocolo, e sugere levar um punhado para comer em casa.
— Cuidado na escada, meu irmão — recomenda. — O último degrau é irregular. Vai com Deus. Um abraço de quebrar os ossos!
Papa Francisco e a economia solidária