6. um semeador na
diáspora
A notícia corria de boca em boca, como se anunciasse um acidente grave ou a internação de um ente querido:
A voz grave, sem tempo para sorrisos, traduzia a consternação daquela gente diante da súbita intervenção. Era assim que lhes pareceu desde o início: uma intervenção. Vinte e cinco anos depois de arrancarem João Goulart do governo, agora queriam arrancar Dom Angélico de São Miguel, da região com a qual ele havia criado laços tão fundos.
— Fui tirar uma radiografia do coração e os médicos ficaram espantados quando viram a chapa: ela trazia a imagem da minha querida e amada Zona Leste — Dom Angélico, espirituoso, não se acanhava em repetir.
Que golpe era aquele que chegava, assim, de forma tão repentina, sem que ninguém fosse consultado?
A novidade foi estampada na Folha de S.Paulo , na edição de 15 de março de 1989. “Papa divide hoje a Igreja de São Paulo”, dizia a chamada na primeira página. O anúncio oficial, segundo a nota, seria feito no Vaticano ao meio-dia (8 horas da manhã em São Miguel). Quem acordou cedo naquela quarta-feira, para dar uma geral na casa, bater o cartão ou tomar a condução rumo ao serviço, ficou logo apreensivo com o que poderia acontecer.
Ao longo do dia, as informações foram chegando, e elas confirmavam os piores temores. Por meio de um decreto, o Papa João Paulo II fatiou a Arquidiocese em cinco. Segundo as jornalistas Evanise Sydow e Marilda Ferri, autoras do livro Dom Paulo: um homem amado e perseguido (Expressão Popular, 2017), a Arquidiocese foi pilhada: os 5.100 quilômetros quadrados originais foram reduzidos para 630; a população de 14,5 milhões de pessoas despencou para 7,5 milhões; o número de paróquias caiu de 395 para 249. Em paralelo, foram criadas as dioceses de Osasco, Campo Limpo, Santo Amaro e São Miguel, dividindo a Arquidiocese em cinco fatias. Havia algo de estranho naquilo. O Palácio dos Bandeirantes, por exemplo, sede do governo paulista e residência do governador, deixou de fazer parte de São Paulo para se vincular a Campo Limpo.
Causou particular estranheza a justificativa dada pela Cúria Romana para aquela canetada. Segundo o decreto, a decisão atendia a uma reivindicação antiga de Dom Paulo, que já em março de 1978 – onze anos antes – havia proposto a reorganização da Arquidiocese. Mas não era a mesma coisa. Dom Paulo, orientado pelo Papa Paulo VI, havia sugerido distribuir os bispos-auxiliares em regiões, para que cada um cuidasse de cerca de 1 milhão de “ovelhas”. Aquele seria o único jeito de garantir que uma autoridade episcopal pudesse estar próxima do “rebanho”. Ele, arcebispo de 10 milhões de fiéis, não podia acompanhar mais de perto o cotidiano dessa multidão. A proposta, portanto, era atribuir certa autonomia aos bispos-auxiliares, mas de modo que todas as dioceses seriam interdependentes, interligadas, sob o báculo centralizado do cardeal. As dioceses também deveriam adotar um caixa único e manter todos os párocos hierarquicamente vinculados à Arquidiocese: os padres e os recursos poderiam se movimentar de uma diocese a outra, conforme a necessidade, evitando a hipótese perversa de se perpetuar a desigualdade econômica entre dioceses vizinhas: uma rica e outra pobre.
A proposta havia sido apresentada diretamente ao Papa João Paulo II em pelo menos duas ocasiões nos anos 1980, a primeira delas por ocasião da visita a São Paulo, em audiência no colégio Santo Américo, logo após o encontro com os trabalhadores no Estádio do Morumbi. O papa demonstrou entusiasmo, mas pouco tempo depois o desenho foi rechaçado pela Cúria Romana, que alegou não haver previsão para algo semelhante no direito canônico – tampouco disposição para inovar.
O decreto de 1989 foi o golpe de misericórdia na proposta original. Da forma como foi editado, ele não apenas tirou poder de Dom Paulo como tirou de Dom Paulo o que lhe era mais caro: as periferias. As franjas da cidade, com sua gente vulnerável e uma multidão de trabalhadores e trabalhadoras, foram suprimidas da jurisdição do cardeal. Na língua, um sabor amargo de retaliação.
“A divisão feita pelo Papa João Paulo II na Arquidiocese de São Paulo, pela qual diminui drasticamente o poder e a influência do cardeal Dom Paulo Evaristo Arns, representa um golpe decisivo na ala progressista da Igreja e na sua expressão ideológica, a Teologia da Libertação”, publicou o Jornal da Tarde.
A divisão, segundo a Folha, representava “uma séria derrota para a linha pastoral progressista”:
“A nomeação de bispos menos comprometidos com a Teologia da Libertação implicará, a médio prazo, a adoção de práticas pastorais mais ‘espiritualistas’ e menos sociopolíticas.”
Dom Angélico poderia ter sido designado para permanecer à frente da nova Diocese de São Miguel. Ele já acumulava catorze anos de trabalho naquela região e poderia muito bem continuar ali, agora como bispo. Não teve conversa. Das quatro regiões que foram apartadas da Arquidiocese, três ganharam bispos novos, trazidos de fora. Apenas Dom Francisco Manuel Vieira, de Osasco, foi mantido no cargo. Os outros foram importados de outras dioceses de modo a “arejar” a Igreja paulistana, opção que foi interpretada como evidente tentativa de represar a igreja politizada representada por Dom Paulo e seus auxiliares. Dom Fernando Figueiredo, franciscano com licenciatura em Lyon e doutorado em Roma, veio de Teófilo Otoni (MG) para assumiu a diocese de Santo Amaro (mais tarde amplamente conhecida por abrigar o padre-cantor Marcelo Rossi). Dom Emílio Pignoli, italiano radicado no Brasil, trocou a diocese de Mogi das Cruzes (SP) pela de Campo Limpo. E Dom Fernando Legal, então bispo de Limeira (SP), substituiu Dom Angélico em São Miguel. Todos mais conservadores do que a turma anterior, segundo as análises feitas na época. A presença amorosa e aguerrida de Dom Angélico junto às ocupações de terra, os mutirões, a luta por creche e postos de saúde no fundão da Zona Leste, tudo isso estava com os dias contados.
Segundo o jornal O Estado de S. Paulo, Dom Angélico disse encarar com “serenidade” seu “afastamento”. Mas, à revelia dele ou com seu velado consentimento, o rebuliço foi geral. Agentes de pastorais, leigos, padres e religiosas da região de São Miguel redigiram e espalharam no mesmo dia do decreto um documento intitulado “Rompendo o silêncio”. O cerne daquele manifesto era expor seu incômodo diante da falta de diálogo com as bases, a ausência de espaço para o debate e o silenciamento de cada paróquia ou fiel. “Profundamente consternados pela flagrante e crescente falta de participação dos leigos, religiosos e presbíteros nas decisões do Vaticano que atingem nossa caminhada pastoral”, diz o texto, “percebemos hoje que nosso silêncio ganha matizes de conivência e cumplicidade.”
O documento trazia uma lista de treze episódios de viés autoritário, da censura da Missa da Terra Sem Males, escrita por Dom Pedro Casaldáliga e Pedro Tierra em 1982, à “nomeação de bispos e promoções aos cardinalato somente de prelados de evidente ideologia conservadora”. Dois itens diziam respeito aos eventos daquele dia: “divisão arbitrária da Arquidiocese de São Paulo” e “remoção de alguns bispos e nomeação de outros, numa clara tentativa de desarticulação da caminhada pastoral da Arquidiocese de São Paulo.” Aquele manifesto muito provavelmente não serviria para nada. Não importa. Dom Angélico havia ensinado a eles a importância de reivindicar, de confrontar tudo o que lhes parecesse injusto, mesmo que fosse inócuo. “A divisão da Arquidiocese de São Paulo é um fato ilustrativo de tudo o que dissemos”, dizia o documento. “Povo, religiosos e presbíteros não fomos sequer informados de nenhum passo do processo. Apenas notificados, pela imprensa, de fatos que nos atingem diretamente.”
Finalmente, no mais efusivo dos desabafos, o então padre Carlos Strabelli, diretor do jornal Grita Povo, escreveu um protesto-homenagem em forma de poema, que foi lido no encerramento da Caminhada da Juventude daquele ano e que, sobreposto a uma fotografia em preto e branco de Dom Angélico, virou panfleto e cartaz, amplamente reproduzido no fundão da Zona Leste naquele 1989 de triste lembrança:
Um homem se fez palavra e veio morar no meio de nós, e desde então tudo foi diferente.
As vozes caladas pelo silêncio imposto aprenderam o gosto da liberdade.
A coragem adormecida de todo um povo despertou e fez suas as ruas e praças.
Vestida de cores e magia, a palavra deste homem foi aquecendo a esperança dos tristes, devolvendo músculos e nervos aos pés cansados e às mãos sem força.
Este homem se fez palavra-de-guerra.
Desafiou poderes, sacudiu tronos, fustigou mentiras, desnudou corrupções.
Sem pedir licença, esta palavra-de-guerra invadiu gabinetes, criou manchetes, se fez assunto obrigatório em todas as bocas.
Espalhou-se feito enxurrada pelas ruas e vielas, acendendo os brios de um povo sem rosto.
Iludem-se aqueles que acham que esta palavra pode ser levada pelo vento. É tarde demais. Ela se fez alicerce de muitos, alimento de centenas de comunidades, roteiro para milhares de vidas.
(…)Enganam-se aqueles que pensam calar esta palavra, mudando-a de lugar. Palavra assim não tem morada fixa: o mundo é sua casa.
Seguia-se mais uma dezena de versos até culminar numa mensagem de exortação, que convidava Dom Angélico a seguir em frente e levar adiante sua palavra.
Aos 56 anos, trinta de sacerdócio, Dom Angélico viu-se desempregado. E agora? Foi aí que Dom Paulo debruçou-se sobre o novo mapa da Arquidiocese, agora diminuída, imaginando uma forma de absorver o bispo subversivo. Dom Alfredo Novak, então bispo-auxiliar da Lapa, não demorou para colocar parte de seu território à disposição do cardeal: até o Rio Tietê, mantém-se a região da Lapa; do Rio Tietê para lá, cria-se uma região para Dom Angélico.
A solução parecia perfeita. Como fizera em 1975, Dom Paulo escolheu para Dom Angélico a região mais popular e periférica que lhe restava. Assim, em 18 de junho, o bispo-jornalista foi empossado na nova região episcopal, que se estendia pela porção Noroeste da cidade. Dom Angélico correu para lá, disposto a começar tudo de novo. Mas algo havia se quebrado de forma definitiva na Igreja de São Paulo, e a compreensão do recado por trás daquele súbito remanejamento fez refrear o entusiasmo dele e de muitos de seus “irmãos” no catolicismo politizado que praticavam.
Estava em curso a diáspora dos bispos de Dom Paulo, sua retirada compulsória das regiões em que haviam atuado e sua transferência para lugares por vezes distantes, subpovoados ou politicamente desinteressantes, onde, na cabeça daqueles que formavam a cúpula da Igreja Católica, deixariam de exercer influência política para se tornarem meros capelães, incapazes de fazer sua voz reverberar na sociedade. Esse movimento havia sido inaugurado no ano anterior, quando Dom Luciano Mendes de Almeida, bispo-auxiliar do Belém, foi transferido para a diocese de Mariana, cidade histórica de Minas Gerais com menos de 60 mil habitantes. Repetia-se agora, em 1989, e voltaria a se repetir na década de 1990.
A estratégia era a mesma: disfarçada de promoção, uma vez que os bispos-auxiliares se tornavam bispos efetivos, diocesanos, o remanejamento para locais menos populosos, longe da imprensa e apartados dos espaços de decisão e das grandes reivindicações, evidenciava o interesse de fundo daqueles que compunham a cúpula da Igreja: mandar os bispos progressistas para o chuveiro.
A Igreja de Dom Paulo é esquartejada
Órfã do bispo que gritava junto com o povo, que cantava com Geraldo Vandré, se sentava no trilho do trem e até xingava governador, São Miguel Paulista entraria numa nova fase, na qual o novo jornal da diocese, Voz de São Miguel, não era tão genial e destemido quanto o Grita Povo, e a Praça do Forró já não reunia 10 mil ou 15 mil pessoas em assembleia popular. Também Dom Angélico perderia parte da energia e do entusiasmo em sua nova etapa.
— O que houve, no final dos anos 1980, foi um mal-estar entre a Cúria Romana e a Arquidiocese de São Paulo — diz Dom Angélico. — Eles acharam que as regiões episcopais haviam adquirido muita independência, como se fossem dioceses próprias, e desmembraram.
Ao chegar à nova região episcopal, uma das seis que sobraram na Arquidiocese – juntamente com as regiões Belém, Ipiranga, Lapa, Santana e Sé –, a primeira tarefa de Dom Angélico foi escolher o nome da região. Como era de seu feitio, o bispo optou por dividir essa tarefa com o povo. Coube à população escolher entre quatro nomes em disputa: Brasilândia, Freguesia do Ó, Santa Cruz e Nossa Senhora da Esperança. Os votos foram depositados numa urna durante uma recepção festiva realizada para acolher o novo bispo. Deu Brasilândia na cabeça, com 814 votos, seguida de Freguesia do Ó, com 534.
Quando finalmente assumiu a região episcopal da Vila Brasilândia, Dom Angélico foi morar no Seminário Maior de Filosofia Santo Cura d’Ars, um lugar calmo e arborizado no alto de uma colina na Freguesia do Ó. Dali, seguia para as diversas paróquias e comunidades, celebrando ora aqui e ora ali, sem a mesma centralidade que a matriz de São Miguel havia representado nos anos anteriores. Foram dez anos de evangelização e pastoreio na Brasilândia. Novamente cercado por padres, religiosos, irmãs e leigos comprometidos com a justiça social e os direitos humanos, Dom Angélico buscou, de certa forma, emular ali a bem-sucedida trajetória que tivera na Zona Leste. Fundou novamente um jornal popular local, o Voz da Esperança, e instalou uma Cúria Regional, até então inexistente, na paróquia Santa Cruz de Itaberaba. Os grandes momentos de união popular e congraçamento eram as Festas da Unidade, evento anual que reunia integrantes das comunidades eclesiais de base da região.
Logo nos primeiros meses na Vila Brasilândia, um primeiro episódio marcaria sua trajetória de luta pela democracia, semelhante em simbologia e significado a marcos temporais anteriores, como a missa de Vladimir Herzog (link externo) e a procissão de Santo Dias. Na manhã de 4 de setembro de 1990, foi revelada a existência de uma vala clandestina no Cemitério Municipal Dom Bosco, no distrito de Perus, onde a ditadura havia ocultado mais de mil ossadas humanas. Eram os corpos de indigentes, pessoas não identificadas ou não reclamadas por suas famílias, mas também restos mortais de vítimas da Rota, a tropa de elite da Polícia Militar de São Paulo, de grupos de extermínio que atuavam nas periferias, como os Esquadrões da Morte, e de opositores da ditadura que haviam sido fuzilados ou torturados até a morte em centros da repressão como o DOI-Codi, local dos assassinatos de Herzog e Manoel Fiel Filho (link externo).
Ao longo dos meses de setembro e outubro, com apoio da Prefeitura e da Comissão de Familiares de Mortos e Desaparecidos Políticos, foram retiradas da vala de Perus (link externo) nada menos que 1.049 sacos plásticos repletos de ossos. No dia 2 de novembro, Dom Angélico e Dom Paulo foram celebrar a tradicional missa do Dia de Finados ali mesmo, no cemitério Dom Bosco. Cercado por uma significativa audiência de algumas centenas de pessoas, todos em pé debaixo do sol, os dois intrépidos sacerdotes acolheram os familiares das vítimas da repressão e da violência de Estado e dividiram a homilia ao pé da vala, tal qual uma cicatriz aberta no campo-santo – e na história do Brasil. “Não matarás”, dizia uma faixa, empunhada por um dos presentes.
No ano seguinte, em agosto de 1991, o menino de Saltinho radicado em São Paulo, irmanado nas aflições e nas provações do povo periférico, recebeu da Câmara Municipal o título de Cidadão Paulistano. Entre 1992 e 1994, na esteira das grandes manifestações dos “cara-pintadas” que culminaram no impeachment do primeiro presidente eleito pelo voto direto desde a redemocratização, muito se falou sobre ética na política, e as paróquias da Vila Brasilândia se engajaram firmemente numa campanha inédita contra a fome, a miséria e pela vida, liderada pelo sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. A imprensa paulista reproduzia em suas páginas o drama dos moradores do Semiárido obrigados a cozinhar palma e caçar calango para driblar a insegurança alimentar.
Em meados dos anos 1990, era evidente que muita coisa havia mudado para melhor no Brasil desde a chegada de Dom Angélico à Zona Leste. Agora, havia eleições diretas, um intelectual progressista ocupava o terceiro andar do Palácio do Planalto, um metalúrgico que escapara da fome para se tornar a maior liderança sindical da América Latina se preparava para sucedê-lo, os centros de tortura vinculados às Forças Armadas tinham sido desmontados, a inflação estava sob controle, um sistema único de saúde saía finalmente do papel e o Governo Federal elaborava pela primeira vez um Plano Nacional de Direitos Humanos. Os grandes desafios para a consolidação da sonhada democracia agora eram outros, e estavam dispersos. Desemprego em alta, a automação nas fábricas roubando os postos de trabalho de muitos operários, dívida externa e interna galopantes, violência descontrolada, estatísticas inéditas de letalidade policial, ocupações de terra que culminavam em chacinas e prisões. Dom Angélico seguia firme, mas sem a mesma intensidade de antes, nem o mesmo brilho. A intervenção pontifícia havia sido muito bem-sucedida. O grupo mais próximo de Dom Paulo acusara o golpe. Muitos murchavam.
Em setembro de 1996, Dom Paulo Evaristo Arns (link externo) enviou ao Vaticano seu pedido de renúncia. Não havia o que fazer: a contagem do tempo era implacável, e o limite de 75 anos imposto pelo direito canônico, irreversível. A aposentadoria do cardeal se consumou dois anos depois.
— Fomos consultados pela nunciatura para sugerir, por escrito, quem nós achávamos que deveria ser o novo arcebispo de São Paulo — conta Padre Júlio Lancellotti, que integrava o Conselho de Presbíteros, uma espécie de colégio consultivo da Arquidiocese. — Eu e outros colegas indicamos Dom Angélico. Nós sabíamos que ele não tinha chance, mas propusemos seu nome com convicção.
Em abril de 1998, Dom Cláudio Hummes, então arcebispo de Fortaleza, chegou do Ceará para preencher o imenso vazio deixado por Dom Paulo. Mais dois anos e a Igreja de São Paulo era completamente descaracterizada. No ano 2000, decretos sucessivos do Papa João Paulo II trataram de consolidar o que muitos já previam: foi consumada a operação esquartejamento. Simultaneamente, os últimos bispos-auxiliares do cardeal Arns foram mandados para longe, dois deles para dioceses que ainda nem existiam. Ao longo do ano 2000, Dom Fernando Penteado foi ordenado bispo de Jacarezinho (PR), Dom Gaspar assumiu a diocese de Barretos (SP), Dom Celso de Queiroz foi ordenado primeiro bispo da recém-criada diocese de Catanduva (SP) e Dom Angélico, primeiro bispo de Blumenau (SC).
— Repare que nenhum padre do grupo mais próximo de Dom Paulo teve o devido reconhecimento pela Igreja — diz o teólogo Fernando Altemeyer, da PUC. — Nenhum deles foi ordenado bispo, muito menos os padres com maior capacidade de mobilização, como Padre Ticão, de Ermelino Matarazzo, ou Padre Júlio Lancellotti. Roma sempre preferiu importar bispos de fora, para não demonstrar qualquer tipo de reconhecimento ou valorização do grupo de Dom Paulo.
Foto: Fátima Giorlano.
Foto: Fátima Giorlano.
Mais uma vez, coube a Dom Angélico acatar as vontade do papa – que ele insiste em chamar de “desígnios de Deus”. Após 25 anos de serviço nas periferias de São Paulo, Dom Angélico tomou posse como bispo de Blumenau, às 16 horas do dia 24 de julho de 2000. Cerca de 5 mil fiéis aglomeraram-se na Catedral São Paulo Apóstolo para recepcioná-lo. Dom Paulo, agora arcebispo emérito, fez a homilia e deu as boas-vindas ao amigo. Nascido em 1921 em Santa Catarina, no pequeno município de Forquilhinha, era justo que o cardeal da esperança assim o fizesse.
Dom Angélico agradeceu, reiterando seu compromisso com os pobres, as pastorais, os movimentos. “Queremos colaborar para que haja sociedade justa e fraterna”, afirmou.
“A desigualdade social é escandalosa; perversa é a concentração de renda nas mãos de poucos. A Diocese de Blumenau e seu Bispo se comprometem, neste dia solene, com o evangélico serviço à causa da justiça. Nossa Igreja quer ir ao encontro libertador dos excluídos, marginalizados, sofridos. Eles têm rosto bem definido. São os sem-trabalho, sem-moradia, sem-comida, sem-terra, sem-saúde, sem-escola, sem-amor. Os que sofrem devem ser os primeiros a nos ocupar”.
Numa agradável cidade de colonização alemã, povoada primeiramente por evangélicos luteranos a partir de 1850, Dom Angélico viveu seus dias de desterro, sua canção do exílio – um exílio interno, missionário, mas ainda exílio. Na “bela e Santa Catarina”, ele não se apequenou. Aos 67 anos, optou por morar mais uma vez no subúrbio. Fundou o jornal Voz da Diocese, repetindo o ímpeto formador e comunicador que marcara sua atuação em São Miguel e na Vila Brasilândia, e construiu o seminário de Blumenau.
— Esperava-se que Blumenau transformasse Dom Angélico, tornando-o mais quieto, menos ativo — avalia Padre Toninho, que se mudou com o bispo para a nova diocese ainda em 2000 e permaneceu ali até sua aposentadoria, em 2009. — Mas o que se viu foi Dom Angélico transformar Blumenau.
O grão de mostarda é pequeno, mas basta semeá-lo para que germine e se transforme numa árvore frondosa. Assim é o Reino de Deus segundo a parábola bíblica. No interior de Santa Catarina, Dom Angélico foi grão de mostarda. Missionário e evangelizador, ele foi logo eleito presidente da Regional Sul 4 da CNBB, que congrega todas as dioceses daquele Estado. Em seguida, foi escolhido para integrar, por oito anos, a direção nacional da CNBB, com a função de cuidar dos padres e dos seminários em todo o país. Baseado em Blumenau, Dom Angélico continuou viajando, dando entrevistas, semeando a terra com sua palavra e seu exemplo.
No final de 2008, meses depois de enviar ao Vaticano seu pedido de renúncia, o Vale do Itajaí foi atingido por enchentes terríveis, uma tragédia ambiental de repercussão internacional que se arrastou por quase um mês, matou mais de cem pessoas e obrigou mais de 9 mil a deixarem suas casas, condenadas pela Defesa Civil. Dom Angélico esteve mais uma vez na linha de frente, combatendo o bom combate. Ordenou que se abrissem as igrejas para abrigar os flagelados daquela terrível catástrofe.
Quando o pedido de renúncia foi finalmente atendido pelo Papa Bento XVI, que enviou Dom José Negri para substituí-lo, o menino de Saltinho sorria. Não era o fim da linha que se anunciava, mas o começo do mundo. De volta a São Paulo em 2009, o Dom de São Miguel e da Vila Brasilândia, o Dom da Palavra e da Ação, o Dom que gritava ao lado do povo, o Dom que construía telhados e se sentava no trilho do trem, o Dom que colava na prova e era um gato no gol, esse Dom sabia que havia muito ainda por fazer. E pôs-se a peregrinar, entre retiros e assembleias, programas de rádio e celebrações ecumênicas, artigos no jornal e homilias, “nos caminhos do homem em busca de Deus”.
Instalado com Irmã Carmem Julieta no sobrado barulhento do Jardim Primavera, Dom Angélico encontrou a Arquidiocese de São Paulo modificada. O arcebispo já não era seu amigo Dom Cláudio Hummes, frade franciscano que substituíra Dom Paulo em 1998 e que Dom Angélico conhecia bem desde os anos 1970, quando era bispo-auxiliar na Zona Leste e Dom Cláudio, bispo de Santo André (SP). Desde 2007, quem mandava na Cúria Metropolitana, encerrado em seu gabinete no casarão de Higienópolis, era Dom Odilo Scherer, ex-secretário-geral da CNBB, ligado a uma ala mais conservadora da Igreja, nomeado arcebispo pelo também conservador Papa Bento XVI. Dom Angélico também foi privado do convívio cotidiano com Dom Paulo. Agora, aproximando-se dos 90 anos, o arcebispo emérito, seu superior por mais de duas décadas na Arquidiocese, morava numa chácara em Taboão da Serra, na região metropolitana, e preferia ficar recluso, em silêncio. “Para não atrapalhar”, justificava.
Dom Angélico, ao contrário, se esquivava do silêncio como uma espécie de Garrincha driblando dois, três, quatro “Joões”. Logo de cara, voltou para o jornal O São Paulo, agora como colunista. Em cada edição, um puxão de orelha. “As elites estão anestesiadas diante do sofrimento do povo”, escreveu, em 2012. “As estatísticas gritam que, de abril de 2011 até início de março de 2012, 165 moradores e moradoras de rua foram assassinados em cidades do país!”, alertou, em outra coluna, publicada no mesmo ano. “É um absurdo que deve sacudir a consciência cívica, cristã de todo Brasil. Um morador de rua é trucidado a cada dois dias! São queimados, esfaqueados, mortos por balas assassinas!” Em 2013, saudou a entronização do Papa Francisco – seu colega Dom Jorge Bergoglio, arcebispo de Buenos Aires – como algo bastante alvissareiro para a “Igreja do povo”, principalmente após os mandatos de João Paulo II e Bento XVI.
Um único episódio suscitou polêmica e trouxe o bispo emérito de Blumenau de volta ao noticiário desde seu retorno a São Paulo. Em 7 de abril de 2018, foi à sede do Sindicato dos Metalúrgicos do ABC, em São Bernardo do Campo, para celebrar um ato ecumênico em memória da ex-primeira-dama Marisa Letícia. Foi a pedido da família dela. Se não tivesse falecido no ano anterior, Dona Marisa completaria 68 anos naquele dia. Dois dias antes do ato ecumênico, no entanto, o ex-presidente Lula, condenado por corrupção e lavagem de dinheiro, teve sua prisão decretada. Resultado: quando Dom Angélico chegou ao sindicato, deu de cara com uma multidão acampada em frente ao prédio. O ato ecumênico precisou ser transferido para um carro de som.
Dom Angélico celebrou como se estivesse numa cerimônia campal, em frente à basílica de Aparecida, ou diante de uma assembleia do movimento de moradia de São Miguel, discursando para milhares na Praça do Forró. Lula foi preso em seguida. Dom Angélico foi bastante criticado por ter se disposto a participar daquele evento, ao lado de um político condenado pela Justiça. Dom Odilo foi um dos que se manifestaram na ocasião. “O arcebispo de São Paulo lamenta a instrumentalização política do ato religioso”, dizia a nota divulgada pela Arquidiocese no dia seguinte. Dom Angélico sentiu o baque. Recompôs-se nos dias que se seguiram, conforme foram chegando telefonemas, cartas e e-mails em seu apoio. Em maio, já estava pronto para seguir, entusiasmado, rumo à próxima conferência, ao próximo retiro, à próxima missa. É sempre hora de evangelizar, ele diz.
Dom Angélico cita a primeira carta de São Paulo aos Coríntios. Em seguida, lança mão de um de seus axiomas: